Mulher “pra casar” tem que tocar piano? Como a ideia de “mulher prendada” transformou o ensino de Música no Brasil.

Ser mulher de classe média ou alta no Brasil da primeira metade do século passado foi praticamente sinônimo de pianista. O piano se tornou um instrumento essencial para uma “mulher prendada”, assim como costurar, bordar, recitar poemas, entre outras prendas sociais reconhecidas pela sociedade da época como mulheres que eram um “bom partido”. Tenho certeza que, se você vasculhar na sua memória buscando as mulheres mais velhas que você conhece encontrará algumas mulheres que estudaram piano na juventude e algumas que tem um piano na sala até hoje. E. dependendo se você nasceu em uma família pobre ou rica, pode ser tanto pessoas da sua família quanto a patroa para quem seu pai ou sua mãe trabalhava.

Mulheres de famílias mais ricas tocando piano e sendo valorizadas por fazer música era tido como algo tão natural pros brasileiros e brasileiras da época que praticamente não passava pela cabeça das pessoas que no século anterior àquele (o século 19, que vai de 1801 a 1900) e mesmo antes, tocar música publicamente ou mesmo se dedicar a aprender um instrumento era entendido como trabalho de pretos escravizados (geralmente homens).

Como foi que uma prática que ficou reservada para aqueles que tinham o menor status social daquela sociedade por tanto tempo acabou se tornando a marca das mulheres de maior status social? E qual o impacto disso no modo como ensinamos Música hoje?

Esse artigo é sobre essa grande transformação, mas antes de falar de Música vai ser preciso dar uma breve olhada de perto nessa sociedade que fez essa transformação. E, principalmente, é preciso entender o que o casamento significa pra essa sociedade pra, depois podermos entender como a Música se transforma junto com essa sociedade.

Famílias e “mercado matrimonial” no Brasil

O Brasil tem uma forte tendência que se observa até hoje de se organizar em torno de famílias. Não é a toa que os sobrenomes se repetem tanto nos parlamentos, nos clubes sociais (Country Clubs da vida), nos meios de comunicação e mesmo nos bairros mais nobres de cada cidade. Isso vem de um tempo em que a família era a grande base política e econômica da sociedade. Estamos falando de uma época em que as pessoas não tinham aposentadoria ou qualquer tipo de previdência social. Se o marido fosse a fonte de renda e ele morresse, tava todo mundo no buraco. A única forma de garantir uma velhice mais confortável ou mesmo de buscar ascensão social era “casar bem” os filhos e filhas, garantindo que nesse casamento não haveria perda de capital ou de status.

Então, era através das famílias que acordos comerciais e alianças políticas eram selados, principalmente entre as famílias mais ricas. E como se sela contratos em uma sociedade que não tem cartórios ou outras instituições oficiais pra reconhecer o trato? Casando filhos e filhas. Um casamento que era uma espécie de “garantia” (um cheque caução, se preferir)

Os casamentos por amor só vão começar a se tornar mais recorrentes no final do século 19 e início do século 20. Antes disso, principalmente entre as famílias ricas, se casava por interesse. Quando uma família queria ampliar suas propriedades ou ampliar sua influência política em uma certa região, casava seu filho ou sua filha com alguém de uma família que pudesse fornecer isso. E, quando se casava uma filha, era dever do pai da noiva pagar um dote, ou seja dar um “adiantamento da herança” (dinheiro, terras, ferramentas agrícolas, gado, escravos, entre outros) para que o casal pudesse viver uma vida confortável desde o início e, claro, manter a imagem de status da família.

“Um jantar brasileiro” (Jean Baptiste Debret) – Pintura de 1827.

Na prática, era como se a mulher fosse dada como parte do dote, um ornamento. Alguém de quem não se esperava opiniões e nem qualquer trabalho, já que ele era feito por escravos. No período colonial, era comum um ditado que dizia que se esperava da mulher que saísse de casa apenas três vezes ao longo da vida: para ser batizada, para se casar e para ser enterrada. Óbvio que muitas mulheres fugiam à essa regra, mas pagavam o preço de serem vistas como “louca”, “encalhada”, “possuída por demônios” e todas essas coisas que a sociedade de hoje em geral também usa pra descrever aquelas que optam por não seguir aquilo que a sociedade espera que ela faça.

De mulheres dotadas a mulheres prendadas

Lá pela metade do século 19 vai ficando mais popular no Brasil a literatura romântica com suas comoventes histórias de amor (como a de Romeu e Julieta de Shakespeare cuja história é uma longa tentativa de fugir de um casamento arranjado para casar por amor, lembra?). Essa mentalidade romântica que se populariza, junto com as, cada vez mais comuns, críticas aos “caçadores de dote” que sonhavam em enriquecer de forma rápida e a crescente separação entre família e negócios foi fazendo a ideia de dote cair em desuso.
Junte isso ao processo de urbanização das cidades brasileiras que acontece no mesmo período e o que temos é que as mulheres mais ricas passam a sair mais de casa (vestidos e cabelos longos circulando pelo barro nunca foi uma experiência muito prazerosa).

Com calçamento, asfalto e luz elétrica pelas ruas e casas, frequentar saraus, festas, teatros se tornou mais e mais comum e o ideal de feminilidade vais e transformando. Se antes, uma mulher “distinta” era aquela confinada à casa e obediente, o número crescente de eventos sociais entre as elites passa a pedir não mais uma mulher que conhece muito pouco o lado de fora da casa e, comumente, nem a escola pôde frequentar. A ideia de que a esposa deveria ser uma boa anfitriã, conversando com convidados sobre assuntos variados e entretendo os presentes com poemas (em francês, de preferência), danças e… música(!) vai se tornando mais e mais comum. Surge a ideia de mulher prendada, ou seja, a mulher que possui diversas habilidades sociais que a habilitam como “boa esposa”.

Se antes as mulheres “vinham com o dote” sem maiores sinais de ter participado da decisão sobre o casamento, agora se esperava que as mulheres demonstrassem uma educação especial. Não a mesma ofertada aos homens, mas, sim, uma educação feminina que as preparava para a vida doméstica (vale lembrar que, até metade do século 20, separar colégios para meninos e para meninas era muito comum. Era comum porque não era a mesma educação que era oferecida pra meninos e pra meninas). Era assim, através da educação (feminina), que se diferenciavam as mulheres vindas de “boa família” (ou família de posses ou família de bem) e as demais (leia-se pobres, ex-escravas, indígenas, não-virgens, etc.): em outras palavras, mulheres “pra casar” e mulheres pra ” se divertir” sem compromisso. E “mulheres pra se divertir”, além de não fazerem “bons casamentos”, eram vistas como desonra para toda a família (eis o cenário que potencializa o pânico moral que temos sobre sexo ainda hoje e o medo de ser uma “vagabunda”).

Para não ser confundida com uma mulher “para se divertir” a família investia em educação: cursos de bordado, costura, dança, canto e/ou piano.

O piano nas casas e nas escolas de Música

Ter um piano já era (e é) um sinal de, no mínimo, um bom nível de vida. Diferente dos EUA, por exemplo, onde tocar piano também era acessível às camadas mais pobres, principalmente através das igrejas (veja Duke Ellington, Ray Charles e Stevie Wonder, por exemplo), no Brasil piano era uma marca de pertencimento às camadas mais ricas da população. E, hoje, quando vemos pinturas ou fotografias de pianos nas casas da elite econômica parece natural, como se o piano tivesse sido sido fabricado com a casa, mas ter piano entre a segunda metade do século 19 e a primeira do século 20 não era nada fácil.

Família e convidados reunidos em volta do piano. Uma cena típica entre as famílias mais ricas muitas vezes retratada.

O Brasil só foi ter fábricas de piano por volta de 1890. Até lá, muitos pianos já circulavam pelo país e, mesmo depois de termos marcas brasileiras, elas não davam conta de atender um mercado que crescia cada vez mais e que dependia de matéria prima importada. Comprando do estrangeiro, os pianos vinham de navio e, ao chegar no Brasil faziam o percurso que qualquer piano precisava fazer para ir à casa de seus donos: eram carregados pelos carregadores de piano, um ofício muito conhecido que só foi desaparecer na metade do século passado.

Negros escravizados carregando um piano no Rio de Janeiro. Desenho de 1862 de Auguste François Biard

Os carregadores de piano tinham seus cantos de trabalho que, além de servir para passar o tempo nas longas horas de caminhada entre uma cidade e outra, ajudava a “acertar o passo”, fazendo todos caminharem no mesmo andamento. A famosa “Missão de Pesquisas Folclóricas” comandada por Mário de Andrade no fim da década de 1930 gravou vários desses cantos de trabalho dos carregadores de piano, como esse abaixo, cantado por carregadores de piano em Recife.

https://www.youtube.com/watch?v=ju38A8dO440

Só assim um piano chegava às casas brasileiras até  mais ou menos a metade do século passado. Comprar um piano, que já não era nada barato, implicava bancar todo o custo com transporte, afinação e, claro, partituras comumente importadas. Em um país predominantemente rural, que até 1930 tinha cerca de 85% da população analfabeta, dá pra imaginar que ter piano era pra poucos e tocar piano ajudava a passar essa mensagem de que a pessoa não pertencia à maioria pobre e iletrada.

Ser prendada era uma forma de demonstrar a origem abastada das jovens brasileiras. Alguém que nascida em uma família com status e boas condições financeiras, mostrava habilidades socialmente reconhecidas, mas que não tinham nenhum valor profissional em si. Ou seja, famílias que podiam abrir mão do dinheiro que poderia vir da força de trabalho das jovens mulheres, o que era raríssimo numa época em que se fazia filhos aos montes (principalmente nas famílias mais pobres) também como uma forma de ter mais mão de obra disponível para ajudar no sustento da família.

Mesmo com o fim da noção de dote, a ideia de que “bons casamentos” eram a base do bem estar material e do status de uma família seguia firme e forte e abrir mão do trabalho de uma jovem mulher era uma forma de investimento. Mulheres “de família” que mantinham sua “honra sexual” (em outras palavras, virgens) e que dominavam algumas habilidades chamadas de prendas era o “ativo” mais valorizado no verdadeiro mercado matrimonial da época (como de costume, os homens podiam ser “rodados” o quanto quisessem e isso não o desvalorizava nesse mesmo mercado). E tocar piano e/ou cantar era uma das prendas mais valorizadas, só que, pra isso era preciso aprender a tocar e é aí que a história do ensino de Música vai se transformando.

Mulheres prendadas na era do Jazz

Toda essa transformação entre mulheres dotadas e prendadas acontece com mais força no início do século passado, mas essa não é a única transformação em andamento. A Primeira Guerra Mundia (1914 – 1918) também marcou essa época levando praticamente todos os homens minimamente sadios para o campo de batalha e deixando as cidades sendo conduzidas por mulheres. Sim, aquelas mulheres que eram mal vistas simplesmente por sair de casa sem estar acompanhada de um familiar, quando foi preciso, ocuparam todos os postos de trabalho até então inimagináveis para mulheres em praticamente todos os países “mais desenvolvidos” e essa foi uma das maiores transformações culturais que o mundo já viu.

Com a economia dos países indo pro brejo, as mulheres de praticamente todas as classes sociais buscaram trabalho fora de casa e, aos poucos, os longos cabelos, longos vestidos e até o espartilho (característicos da era vitoriana) foram dando espaço para roupas mais leves cabelos curtos (que não prendiam nas máquinas). A era do Jazz com suas danças “maliciosas” para a época, as casas noturnas (não mais um reduto masculino), a influência de estilistas como Coco Chanel  e, principalmente os filmes de Hollywood ajudaram a propagar as novas tendências que transformaram o visual feminino da época. A moda feminina antes e depois da guerra 

Prova de Harmonia no Instituto Nacional de Música do RIo de Janeiro, hoje incorporado à Escola de Música da UFRJ. Foto de 1910
Londres em 1900
As "melindrosas" na era do Jazz
Belas e não recatadas no bar
Belas, não recatadas no bar.

Como você pode imaginar, essa transformação deixou as “famílias de bem” de cabelo em pé. O pânico moral que conhecemos bem hoje com a reação dos conservadores em relação ao funk carioca foi bem forte e estava estampado nos jornais o tempo todo. Entre os sinais claros de que o mundo estava se tornando uma grande balbúrdia imoral estava o número considerável de mulheres que, ferindo a “moral e os bons costumes” tinham a audácia de usar calças(!). Com frequência, os jornais consultavam “especialistas” para falar dos males que as “danças modernas” ou cortar cabelos curtos traziam às jovens mulheres.  A passagem abaixo (com a ortografia da época) foi publicada no Jornal O Dever de 

affirmam, por exemplo, os medicos que esses bailes publicos fazem maior estragos entre os jovens de edade escolar. Os effeitos maleficos das dansas americanas classificaram-se em physicos,
physiologicos, intellectuaes e espirituaes.
Tomando em consideração o aspecto externo das dansas modernas e as relações que se estabelecem entre os que dansam o sr. Mac Keever sustenta que o maior mal e perigo reside na “excitação sensual”; e depois de estudar o assumpto por todos os aspectos, conclue que as dansas modernas são, definitivamente “inimigas da moral”, da decencia collectiva e da religião christã. Passa a tratar dos prejuizos intellectuaes e affirma que a musica rapida e movimentada do “jazz” americano faz uma reação muito além da normal, produzindo uma intoxicação mental que se converte num mixto de hysterismo e sensualidade.
O pior, porém, diz o sr.Keever, é o damno espiritual. Os effeitos violentos das dansas orgiacas dos cabarets attingem suas ferozes consequencias nas reacções moraes e espirituaes. Desde que
affectada de elementos morbosos, a subconsciencia tende a converter o individuo a um estado absolutamente surdo as vozes da moral e levam no a enfurecer se sempre que se lhe suggerem os
principios moraes. 

 E, nesse cenário, a figura da mulher prendada vai se tornando cada vez mais um sinal de “exclusividade”. Um sinal de que, em um mundo à beira de um abismo moral, ainda havia mulheres que sabiam se portar como “boas esposas”, “belas, recatadas e do lar”. Na prática, era a primeira vez que se tornava bem comum mulheres terem a “vida dupla” que os homens sempre tiveram. 

O reflexo disso foi o conflito geracional entre homens e mulheres criados no mundo antes da guerra e os jovens que conviviam com novas noções de feminilidade do pós-guerra. A charge abaixo publicada em 1921 ilustra essa diferença comparando a educação que a mãe teve com a que sua filha teria no pós-guerra. 

A charge mostra nos quadros sobre os professores da filha um grande exagero pra época. A ideia é mostrar pra onde aquela sociedade estava indo, algo como uma previsão do futuro que exagera para ridicularizar. 

O primeiro quadro é mais interessante pra nós, claro. Nele,  um professor branco, mais velho e vestido com um fraque que convida a aluna a sentar-se ao piano enquanto segura uma partitura que é o que será estudado naquele dia. Seu gesto de convite para se sentar mostra que conhece as “boas maneiras” da alta sociedade. A aluna, levemente curvada, dirige o olhar para onde o professor aponta, parecendo seguir obedientemente sua indicação e se veste como as alunas do Instituto Nacional de Música na foto que já vimos aqui: vestidos e cabelos longos (um espartilho, talvez). 

O quadro ao lado apresenta um professor negro apresentado como professor de musicaster, o que é uma palavra pouco usual no inglês que significa músico medíocre. Também vestido com um fraque, mas com um conjunto de calças e sapatos que já mostram que não se veste “a rigor”. O professor carrega um tambor, sem partitura e a aluna de cabelos curtos, fumando e com um vestido que revela parte das pernas e a maior parte dos braços, observa seu professor chegar com uma postura corporal ereta que sugere igualdade de posição entre professor e aluna. 

Dá pra perceber como a sociedade daquela época estava escandalizada com as gerações mais novas (o que continuou acontecendo sempre, até hoje) e o ensino das prendas e de modos de ser recatados foram vistos como uma forma de evitar que isso acontecesse na sua família. Na prática, as jovens que iam à missa com suas famílias e tinham aulas para aprender as prendas sociais de dia já conseguiam explorar novas personalidades de noite, mesmo que às escondidas. Isso só deixou as famílias mais preocupadas em perder seus “ativos” e investir mais em uma formação não só musical, mas também moral.

O ensino de Música para jovens mulheres prendadas

O piano e o canto eram a prática musical preferida para as mulheres, principalmente porque sua execução revelava pouco dos corpos das mulheres enquanto tocavam. Era possível executar o piano ou cantar e manter o ar de recato. Isso foi essencial pra difusão do instrumento ao ponto de haver tantas mulheres tocando piano e se executando tanta música pra piano solo que Mário de Andrade escreveu o famoso artigo publicado em 1922 sobre o que chamou de pianolatria na cidade de São Paulo. 

A busca por professores/as de piano cresceu como nunca e os imigrantes europeus recém-chegados aproveitaram bastante essas oportunidades de emprego (mesmo quando nem se consideravam pianistas direito). O problema é que as aulas particulares eram muito boas por evitar que as jovens se expusessem nas ruas da cidade (o que as pessoas iam falar, não é?), mas sempre tinha o inconveniente de um professor homem acabar seduzindo as jovens, como já comentei nesse post aqui.

Os conservatórios seriam uma alternativa mais institucionalizada (menos caseira e pessoal) e, por isso, vista por alguns como mais segura para as “jovens, puras e indefesas” querendo ser prendadas. E os conservatórios brasileiros cresceram muito em número, principalmente no período logo depois da abolição e da Proclamação da República, a chamada Primeira República (1889-1930). O Brasil que teve apenas um conservatório durante quase cinquenta anos, construiu (com uma boa dose de dinheiro público) 18 conservatórios nos 40 anos do período seguinte.

 

Apenas um conservatório no Brasil em 1889 (fim do período imperial e abolição da escravatura)
18 conservatórios de Música oficiais em 1930 (fim da Primeira República)

E nos conservatórios, claro, não se tocava tambor, como na charge, e nem a música das “danças modernas”. O “som de preto, de favelado” que, “quando toca, ninguém fica parado” da época era o maxixe e o samba (no Rio de Janeiro, principalmente) e claro que esse repertório jamais soou entre aquelas paredes.

Os conservatórios brasileiros da época foram uma espécie de embaixada cultural europeia (da música italiana, alemã e francesa, na sua enorme maioria). Acolheu grande parte dos músicos brasileiros que foram estudar na Europa (Carlos Gomes, Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno e outros) como professores e uns tantos estrangeiros e ajudaram muito a difundi o repertório de concerto europeu e sua teoria musical (que estudamos até hoje, como já analisei aqui e aqui)  

Nada de música da ralé. Só repertórios que reforçava o quanto aquelas moças que estudavam piano eram distintas das demais (pretas, indígenas e outras mulheres pobres) e mais próximas da cultura dos grandes centros europeus do que dos caipiras iletrados dos trópicos. E eu estou falando de moças porque o público desses conservatórios foi, na prática, exclusivamente feminino por muitas décadas. 

O gráfico abaixo é parte dessa pesquisa aqui e mostra como a matrícula de mulheres foi se tornando muito maior que a dos homens ao longo do período em que o Conservatório do Rio de Janeiro era o único do país. 

Gráfico criado pela pesquisadora Janaína Girotto da Silva.

Depois desse período e com a criação dos outros 17 conservatórios até a década de 1930, o público dos conservatórios foi de meninas ou jovens mulheres, pelo que se sabe com as ainda poucas pesquisas que temos e pelos relatos que se ouve sobre os conservatórios na primeira metade do século passado. Essa ainda é uma história a ser contada com mais consistência, mas alguns registros fotográficos dão uma boa noção de quem frequentava esses conservatórios.

Alunas da Escola Municipal de Música de Bagé (RS) em 1922. Acervo do Museu Dom Diogo de Souza - FAT/Urcamp.

Outra característica de grande parte desses conservatórios brasileiros (faltam pesquisas para verificar o quanto isso era comum) é que, diferente dos conservatórios europeus nos quais se basearam, praticamente não havia disciplinas voltadas à criação musical como composição, harmonia, contraponto e outras entendidas como base para a composição na música de concerto europeia.

Os conservatórios brasileiros dedicavam seus esforços para formar instrumentistas capazes de reproduzir músicas (as compostas por homens, europeus, brancos e mortos), mas não de criar, o que não impediu muitas mulheres de desenvolver essas habilidades sem a ajuda dos conservatórios. O fato é que, às vezes por falta de alunos/as interessados em estudar composição ou até por simplesmente  não serem ofertadas, a falta dessas disciplinas é, ao que parece, uma marca dos conservatórios brasileiros. Uma marca que pode ser explicada pela demanda por ensinar prendas domésticas, mais do que qualquer interessem em formar profissionais.

Ser profissional das artes naquela época, como você sabe, era sinônimo de “mulher da vida” e, claro, o antônimo de mulher prendada. Nessa época, a maior parte das musicistas atuando nesse tipo de circuito musical fazia questão de ser apresentada como amadora para que isso não sujasse sua reputação e a de sua família.

Houveram mulheres que fugiram desse circuito de formação de mulheres prendadas? Com certeza! E a história de gigantes como Chiquinha Gonzaga, Nair de Tefé  e Guiomar Novaes ilustram bem essas linhas de fuga, mas é certo que a história que contei aqui teve grande impacto na forma como se ensinou música na época e, inclusive, na forma como ensinamos hoje.

Nesse artigo deixei de colocar muitas fontes porque, realmente era muita coisa e ia quebrar o ritmo da leitura. Se quiser saber das fontes ou ver essa discussão com mais detalhes, acessa minha tese de doutorado que explorou justamente esse tema.

Assine gratuitamente

Deixe um comentário