Por que os “gênios da música” são alemães? 5 razões para entender

 
Mozart, Beethoven e Bach (no acordeom) em imagem rara que invejosos chamam de montagem.

Bach, Mozart e Beethoven estão entre os compositores que têm uma posição especial no mundo da música. Suas músicas estão, certamente, não só entre as mais tocadas no planeta, mas as que estão nesse posto a mais tempo do que qualquer outro/a artista que você conheça. Além disso, estão entre as mais ensinadas por professores e instituições de ensino de música no mundo. E não é só isso: suas músicas desfrutam dessa notável coincidência de serem mais ouvidas, principalmente, entre as classes mais ricas da população (seja lá de que país) e de serem ensinadas nas escolas de música com mais alto status social (universidades e conservatórios).

Você conseguiria citar outro tipo de produção musical que ocupe um lugar minimamente semelhante na história da música? Conseguiria citar outros/as compositores/as a quem a palavra “gênio” foi tão associada por tanto tempo?

E o curioso é que é bem provável que você já tenha ouvido tanto falar que eles são gênios que nem estranha mais. É como se fosse um fato da natureza: o céu é azul, a água é molhada e Bach, Mozart e Beethoven são gênios. Quem é você pra questionar um fato como esse, não é?

Na prática, se você não é um ávido ouvinte da música de concerto europeia, é provável que você só conheça algumas do Bach (Jesus alegria dos Homens, Toccata e Fuga em ré menor, Suíte pra violoncelo) do Mozart (Marcha Turca, Pequena Serenata Noturna) e do Beethoven (Ode à Alegria, Für Elise, A Sinfonia nº5). Grande parte dessas músicas são bem conhecidas também por serem tocadas como trilhas de filmes, em propagandas, e até no caminhão que vende gás (ao som de Für Elise do Beethoven). Mas, sejamos sinceros: a chance de você conhecer pelo menos 30% da música deles é muito remota, o que é estranho, já que são músicas muito tocadas.

O levantamento feito pelo site Bachtrack analisando as músicas tocadas em dezenas de milhares de concertos pelo mundo mostrou que Mozart e Beethoven estão sempre numa apertada disputada pelo primeiro lugar de quem tem sua música mais tocada a cada ano. Desde 2014, Beethoven foi o mais tocado (2014, 2016, 2018 e 2019), mas Mozart ganhou em alguns anos também (2015 e 2017)

Imagine que, se fosse uma corrida, Mozart ou Beethoven ganhariam sempre com pouca diferença entre eles, mas consideravelmente na frente dos próximos: Bach, Brahms, Schubert e Tchaikowsky (o único não-alemão da lista e justamente aquele que ouviu muito de seus compatriotas russos que sua música era alemã demais).

Não me entenda mal. Eu jamais diria que a música deles não vale nada, que ela é “ruim” ou que eu prefiro cortar meu braço fora em vez de ouvir uma ópera do Mozart. Eu gosto do trabalho deles, entendo as razões que levaram eles a se destacar e recomendo a escuta, mas não dá pra deixar de estranhar algumas coisas e, como vocês são curiosos/as, como eu, e gostam de fazer perguntas, sei que vão me entender.

A primeira coisa estranha é: todos esses compositores nasceram na Alemanha (ou na Áustria na fronteira com a Alemanha, no caso do Mozart) e fizeram a maior parte da sua música circular pela primeira vez no século 18 (ou seja, entre 1701 e 1800). Não é esquisito? O mundo do tamanho que é e tendo música soando em TODOS os cantos onde tem pessoas reunidas e acontece essa enorme coincidência de “os maiores compositores da música mundial” terem nascido justamente em um país que é mais ou menos o tamanho do estado de Minas Gerais?

A Alemanha em comparação com o Mundo e o Brasil em verde escuro. Essa imagem, eu encontrei aqui.

E mais: esses compositores que são aqueles cujas músicas são ensinadas e tocadas em praticamente todas as universidades e conservatórios do mundo (do Japão à Nigéria, passando pela Rússia e o nosso Brasil) deram essa baita coincidência de terem feito música por volta do mesmo século? Pensa quanta música foi feita nesse nosso planeta desde 1800 (nem vou falar de antes disso): sério que não apareceu nenhum/a outro/a compositor/a que ocupasse esse lugar de ter sua música estudada em qualquer escola “superior” de música? Por que é que esses compositores alemães são diferentes de todos os demais?

Do jeito que escrevi até aqui, pode parecer que eu estou prestes a anunciar uma conspiração dos alemães que querem dominar o mundo hipnotizando as pessoas com música, mas não é nada disso. Não tem nenhuma arma na cabeça dos músicos obrigando eles a tocar essa ou aquela música, eu sei, mas isso não explica esse “acordo mundial” de tocar compositores alemães e cultuá-los como aqueles que estão entre os “maiores gênios da música”?

Essa é uma questão bem antiga que se pesquisou muito sobre e o que eu vou fazer é levantar algumas possíveis explicações que já foram apresentadas por pessoas da área de Música. Não é uma explicação definitiva nem inquestionável (nenhuma é), mas reflete boa parte do que a área vem discutindo hoje.

Nessa explicação, vou falar de cinco pontos que ajudam a gente a explicar uma parte dessa predominância alemã: o contexto social da Alemanha no século 19, que leva à ideia de “gênio”, que leva à teoria musical, que leva à ideia de que a música que se ouve e toca é um símbolo de status social,

Nacionalismo na Alemanha no século XIX (1801-1900)

Não era só na Alemanha. No mundo todo se sentia os ecos da Revolução Francesa (1789) que chegou a decapitar nobres (príncipes, duques, condes, etc.) para mostrar que era possível viver sem ter que obedecer às ordens de alguma realeza. A Revolução Francesa anunciou que nada impedia as pessoas de viver em um ambiente democrático onde a população decidiria (com votos, acordos e muita treta) seus próprios rumos. As guilhotinas e as cabeças rolando era uma forma de mostrar que eles estavam falando sério e que não tinha mais volta.

Só que, quando as cabeças que davam as ordens e definiam quem pertencia a que reino começaram a rolar, se cria um novo problema que é entender o que une aquele bando de gente sem-rei. Se o que unia eles era, a obediência à coroa, sem coroa, a questão agora é saber por que é que eu preciso me manter unido com essas pessoas? Por que não procurar outro lugar pra viver quando eu sentir que não concordo com eles?

Os nacionalismos são uma forma de responder a essas questões. Os nacionalistas, em geral, buscam mostrar para as pessoas que elas têm uma história em comum; que essa história é cheia de grandes vitórias e heróis admiráveis e que cada pessoa tem tudo para ser um herói como aqueles que vieram antes dele, desde que seja sempre fiel a sua nação e suas leis e a esse território que chamam de país (ou nação ou pátria).

Isso quer dizer que a Alemanha, como qualquer outro país nesse período (inclusive o Brasil), precisava montar uma história e essas histórias precisavam de heróis (para quem se ergueriam estátuas para lembrar a todos o que une aquelas pessoas). E mais, essa história precisava ser contada de forma que unisse territórios que estavam separados até pouco tempo atrás e que as pessoas neles não se viam como parte de uma mesma cultura. Não demorou até perceberem que a música poderia ser um dos símbolos nacionais importantes pra “fabricar” essa identidade alemã.

No Brasil, foi a mesma coisa. O compositor campinense Carlos Gomes foi apresentado por muito tempo como o compositor “símbolo nacional” do Brasil. Sua ópera “O Guarani” (que você conhece da abertura de “A voz do Brasil” no rádio), baseada no romance de José de Alencar,  foi tida como uma obra que expressava o espírito da nação, apesar de ter seu texto cantado em italiano e obedecer o estilo musical das óperas italianas (Carlos Gomes estudou no Conservatório de Milão).  Uma prova do seu prestígio no Brasil e de sua imagem de símbolo nacional é a quantidade imensa de ruas, avenidas, praça batizadas com seu nome, além de vários monumentos (estátuas e bustos, por exemplo). Como é comum no nacionalismo, há a preocupação em erguer monumentos que tornem visual para as pessoas a celebração dos seus grandes heróis (e gênios, no caso da cultura).

Carlos Gomes em seu primeiro meme "say what?" da história
O humorista estadounidense Kevin Hart homenageando o meme clássico de Carlos Gomes

Na Alemanha e na Áustria, Beethoven tem o mesmo status de símbolo nacional que tem Carlos Gomes no Brasil, mas por uma série de razões que vamos ver adiante aqui, sua imagem também foi se tornando mais do que a de um “gênio nacional” (um “herói da raça”, como se dizia na época). Sua imagem passou a ser a de um gênio “mundial”, algo como um herói da música cuja obra era tão rica que não se restringia apenas a seu gênero musical (a música clássica alemã). Sua obra era apresentada como maior até do que a separação por gêneros musicais (jazz, samba, ópera). Ela era símbolo “universal” da música a ponto de seu busto ser um dos mais reproduzidos da história e servir de “enfeite” até hoje em ambientes como escolas de música e no cômodo de casas que têm piano.

Estátua de Beethoven em Bohn (Alemanha), sua cidade natal.
Busto em miniatura de Beethoven que você, com certeza, já viu em cima de um piano na casa de alguém
 

A palavra “gênio” foi usada nessa época como algo que correspondia ao “herói” (naquela época, mais usado para militares que tiveram grandes feitos) e o uso dessa palavra também teve seu papel nessa história.

Gênio

Não. A palavra gênio não é uma palavra que sempre existiu. É justamente nesse período entre o século 18 e 19 que ela vai ganhar na Europa o sentido que damos a ela hoje, como explica o historiador Arnold Hauser no livro História Social da Arte e da LiteraturaDuas coisas ajudam a estabelecer a palavra gênio no vocabulário do século 19. 

Primeira, a importância de ter, na música, um correspondente ao herói na área militar que ajudasse a construir uma imagem de unidade nacional e, segunda, o fato de que quanto mais cabeças de nobres rolavam, mais postos de trabalho pra músicos desapareciam das cortes.

O trabalho de músico de corte era o que tinha mais status entre músicos na Europa daquela época. Ser um músico reconhecido, significava ser empregado por um rei, um príncipe, um conde ou até um padre ou bispo e animar com música as festas, recepção de convidados, eventos, missas ou mesmo entreter a realeza e o clero. Era nesse tipo de trabalho que não só Bach, Mozart e Beethoven trabalharam, mas também seus pais e avôs. Apesar de ser um alto posto para os músicos, nada muito mais reconhecido ou bem pago que o de cozinheiro (que não tinham nem de longe o status dos chefs de hoje em dia), como o historiador Tim Blanning analisa nesse livro aqui.

Com o crescente fim das monarquias na Europa, esse tipo de posto de trabalho vai desaparecendo e os músicos de lá acabam tendo que se adaptar à vida de músico que conhecemos bem hoje: dar concertos cobrando ingressos, dar aula, escrever música por encomenda, ensaiar conjuntos para tocar em eventos para os quais foram contratados, etc.

Sem a proteção da coroa que lhes dava um bom status como músicos, os músicos da época acabaram trabalhando como profissionais liberais, mas, dessa vez, em livre concorrência com qualquer um que oferecesse serviços musicais, inclusive amadores. E, num ambiente de concorrência livre, ter um título que diferencia os “bons músicos” daqueles que são “amadores”, é uma ótima forma de mostrar que você não é igual aos outros. É aí que entra a palavra gênio que funcionaria também como uma espécie de “selo do Inmetro” que atestava a qualidade da música que aquele sujeito fazia. Mais do que isso, usar a plavra gênio para se referir a um músico é como dizer que ele é algo próximo de um deus, uma força sobrenatural cujo talento muito acima de qualquer média só pode ser obra de uma força superior.

A questão é que dá pra entender como o termo gênio apareceu, mas o que explica ela ter que ser usada ainda hoje? Vamos falar de Beethoven um pouquinho (ele que é o próprio modelo de “gênio da música”): Philip Ewell (teórico da música e professor da Universidade de Nova York) argumentou aqui que, para afirmar que Beethoven é um compositor “acima da média”, é preciso conhecer todas as músicas escritas no planeta Terra ao longo desses mais de 200 anos que em que sua música se faz presente.

Faz sentido. Afirmar que Beethoven é acima da média, pressupõe que sabemos onde a média está. Significa dizer que você tem condições de responder, por exemplo, em que sentido a música de Beethoven é diferente (mais “madura”, mais “elaborada”, mais “complexa”) da música que se fez no Azerbaijão, ou no Japão, ou na Nigéria, ou no Peru. Que compositora ou compositor na Tailândia mais se aproximou da genialidade de Beethoven? Sem saber responder perguntas como essa, que condições temos para definir essa média musical no planeta? E olha que eu nem estou questionando quais serão os critérios pra julgar o que se destaca ou não e do quê.

Se a ideia é dizer que Beethoven é um compositor acima da média dentro da chamada música clássica (européia), então, a coisa muda de figura. Agora, só é preciso dizer em que sentido a música de Beethoven é diferente (mais “madura”, mais “elaborada”, mais “complexa”) que a música de seus colegas compositores clássicos em Viena, mas também dos compositores italianos, russos, ingleses e até da música do compositor brasileiro Padre José Maurício, por exemplo, que também viveu o século 18 e também produziu música no “modelo clássico”.

Ok, mas o que, então, faz com que boa parte das pessoas sigam tratando a genialidade de Beethoven como algo inquestionável? Bem, essa é uma questão que já foi bastante debatida, mas ganhou um novo fôlego recentemente quando Youtubers que trabalham com divulgação científica em Música postaram vídeos sobre como a teoria musical que nos é ensinada (e que eu ensinei muito também) ajuda a sustentar toda essa história de que a música clássica alemã tem algo de especial que nenhuma tem (recomendo o de Adam Neely e o do canal 12 tone. Se tá difícil no inglês, o site rimas e batidas, fez uma análise do vídeo do Adam Neely aqui).

Teoria(s) musical(is)

 Você já teve a oportunidade de ler um texto escrito há várias décadas ou séculos, como um texto de 1910, quando se escrevia “pharmacia” e “comprehender”? Leva um tempo pra você entender o texto, não é? A língua mudou tanto desde lá que a gente quase acha que é outra língua. Imagina, então, se a gente estudasse na escola hoje os dicionários, as gramáticas e os livros didáticos daquela época. Não ia ser muito estranho?

E se eu te dissesse que é exatamente isso que fazemos em música hoje em dia? Você acreditaria? É triste dizer, mas você pode acreditar. Te desafio a encontrar o livro mais antigo que você puder encontrar de teoria musical e comparar com o mais recente. É assustador o quanto eles são, na prática, idênticos. 

Começa apresentando como se escreve partituras: as figuras rítmicas (semínima, colcheia, etc.), as notas no pentagrama, as claves, então passa pra formação de escalas, depois de acordes, funções tonais,… (quem já leu alguns, sabe do que estou falando). Não é louco pensar o quanto a música se transformou nos mais de duzentos anos que temos esse tipo de livro e os livros não mudaram praticamente nada? Como se explica isso?

Bom, um caminho pra explicar isso é falar de tradição. Pra entrar na universidade de Música, eu fiz uma prova específica de teoria musical que cobrava exatamente esses conteúdos. Os professores que deram aula pra mim, pra entrar na universidade (e, depois, pra dar aula provavelmente) fizeram uma prova semelhante com os mesmos conteúdos. E os professores deles também, e os professores deles. E, quando entramos na universidade, aprendemos ainda mais profundamente esses mesmos conteúdos. E esses conteúdos eram ensinados e cobrados nos primeiros conservatórios brasileiros que acabaram se tornando grande parte dos cursos de Música universitários que temos hoje (o Conservatório Imperial de Música do Rio de Janeiro, hoje faz parte da UFRJ, por exemplo).

E, em todo esse tempo que se estuda “teoria musical” nas escolas de música, universidades, conservatórios e, hoje, no Youtube, raramente se comenta que essa teoria é apenas uma das teorias musicais que existem. Sim, ela é uma teoria musical que te ajuda a entender muito bem um certo tipo de música: a música clássica alemã do século 18 (sim. Ela mesma!). Isso, ela faz muito bem. Mas ela também é muito limitada. Se prende quase exclusivamente de explicar como organizar alturas (notas musicais), mas muito pouco de articulações, ritmos, intensidades,… enfim, todo o resto daquilo que a gente chama música, que não é pouco. 

É que os teóricos que hoje estudamos como clássicos (Schoenberg, Schenker, entre outros), além de ser, na sua maioria, alemães (e homens brancos) escreveram grandes tratados de teoria musical, harmonia e contraponto usando sempre exemplos de músicas pra ilustrar o que estavam falando, como bons professores que eram. E adivinha de quem era essas músicas! Sim! Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, … músicos alemães e brancos do século 18 e alguns do 19. Não é à toa que o Prof. Philip Ewell vem defendendo a tese de que a teoria musical comumente ensinada é racista por palestras pelo mundo, inclusive no Brasil em um evento organizado pelo curso de Música da Unirio

É como se eu escrevesse um manual sobre esportes muito bem fundamentado e cheio de exemplos, só que todos os exemplos são de basquete. E digo mais: é como se todos os exemplos de teoria do esporte visse só do basquete da NBA (a liga de basquete só de times dos EUA). Se toda a “teoria do esporte” que eu conheço só fala de basquete dos EUA, sempre que eu ver alguém jogando futebol, rugby ou lutando boxe, vou dizer que “aquilo” não é esporte ou não é um esporte bom o suficiente pra se equiparar aos grandes mestres usados como exemplo de bom esporte. E, claro, nem o basquete de outros países conseguiria o mesmo status da NBA. Então, Mike Tyson, Pelé ou Ayrton Senna podem até fazer algo meio interessante, mas nunca se equipararão ao grande Michael Jordan, entende? Assim como Miles Davis (no Jazz), Chiquinha Gonzaga (no chorinho), Ravi Shankar (na música clássica indiana) e Madonna (na música pop) jamais se equipararão a Beethoven. 

E esse tipo de hierarquia entre músicas pode ser algo sobre o qual a gente conversa só usando palavras relacionadas à música, mas, na prática, sempre tem como consequência uma hierarquização das pessoas que escutam cada um desses tipos de música. Escutar música clássica alemã, então, te dá um status social diferente.

Música clássica alemã como símbolo de status social

 Quando as cabeças que antes usavam coroas começaram a rolar, foi-se com as coroas os títulos de nobreza (duque, conde, barão, marquês). Esses eram títulos dados pelos reis como forma de reconhecer que estes não eram simples plebeus. Esses títulos eram dados para aqueles que tinham muitas terras e, portanto, eram muito mais ricos que a média da população e, por isso, eram tratados pelos reis e rainhas como pessoas próximas. Eram convidados para os eventos reais, aniversários e batismos dos parentes mais próximos do rei e sempre davam um jeito de aparecer para não perder o seu posto.
Quando esses títulos desaparecem, aqueles que eram duques ou barões, se tornam mais um. Não são mais chamados pelo seu título, não são reverenciados quando passam na rua. E a única forma de se distinguir da ralé, dos pobretões que trabalhavam pra ter o que comer hoje, era através do consumo e dos costumes. É nesse período em que começa a se dar mais atenção pra o que se veste, o que se come e como se come (os modos à mesa e o saber usar os talheres), o tipo de arte que compra, o uso correto da “língua culta” e, claro, a música que se escuta e toca, como explicam muito bem os livros do sociólogo Pierre Bourdieu e do antropólogo Grant McCracken, entre muitos outros.
Mostrar que você sabe apreciar “boa música” significa não só saber identificar os compositores, as músicas e suas diferentes partes, mas, também, saber se comportar: fazer silêncio, não dançar, só bater palmas no fim da música (nunca entre os movimentos que compõem a música), se vestir a caráter e demonstrar que conhece as “regras de etiqueta”. Na falta de títulos de nobreza, os mais ricos que vêm de famílias tradicionalmente ricas reconhecem outros ricos (e quem é “novo rico”) pela habilidade de se vestir com “boas roupas”, saber apreciar “boa música”, “bons vinhos”, “boa arte” (artesanato não!), “boa comida” com “boas maneiras”, além de saber se portar como um deles sem demonstrar grande esforço. 
Esses códigos de etiqueta são uma marca do fim dos títulos de nobreza, já que os concertos de música clássica anteriores a isso eram qualquer coisa menos silenciosos e preocupados com etiqueta. O compositor alemão(!) Richard Wagner disse diversas vezes que o estilo de ópera que criou era uma forma de fazer o público ficar mais atento e, assim, diminuir o forte barulho que vinha da platéia. 
Os concertos de antes das “regras de etiqueta para apreciadores de música clássica” eram, mais do que tudo, eventos sociais. Um espaço para encontrar amigos, conversar, jogar baralho, beber, fazer piada com quem está passando (sim. Não se achava errado caminhar pelo teatro enquanto a música estava sendo tocada). 
As regras de etiqueta para concertos foram sim uma demanda dos músicos que, a partir do culto aos “gênios” começaram a querer ver sua arte valorizada e atentamente apreciada, o que fez muitos músicos e musicistas mais satisfeitos em tocar para o público, mas também fez o público mais satisfeito por saber que esse tipo de comportamento dentro dos grandes teatros e salas de concerto os diferenciava bastante da ralé do lado de fora.
Para isso, poucas músicas poderiam cumprir tão bem esse objetivo quanto a música alemã, também chamada de “música séria” ou “música artística” pra se diferenciar da ópera italiana, o tipo de música europeia de maior sucesso no mundo antes do início do século 20 (1901-2000). 
Assim, a música alemã foi se tornando sinônimo de música “artística” e de status social através:
– da educação musical difundida pelos conservatórios e professores alemães que ensinavam com base nos tratados de teoria musical, harmonia e contraponto sistematizados pelos alemães (e, se tem uma coisa que precisamos reconhecer que os alemães são talentosos, é em sistematizar coisas) usando exemplos de músicos (homens) alemães;
–  do “controle do mercado” garantindo que apenas aqueles que conheciam a fundo a teoria musical de origem alemã pudessem ingressar em cursos superiores de ensino de música e, portanto, tivessem maior “autoridade” para ensinar e falar sobre música (em geral. não só a música alemã) do que os demais; 
– da propagação da ideia de que existe um tipo de conhecimento em música que é pura e simplesmente “técnico” e que apenas analisa as músicas através de critérios que não favorecem nenhum gênero musical específico, mas que, por “coincidência” acaba concluindo que a música mais “sofisticada” é a música de concerto de homens alemães e;

– pela vontade das classes mais ricas em se diferenciar das classes mais pobres consumindo artefatos culturais identificados como exclusivos daqueles que têm gosto “refinado”.

Nunca é demais reforçar que essa situação não é fruto de vilões (o oposto de heróis?) alemães que têm um plano malévolo para dominar o mundo ao som da nona sinfonia de Beethoven. As coisas são assim basicamente porque muita gente se beneficiou com isso e não havia, até o momento, um conjunto forte o suficiente de pessoas na área de Música dispostas a questionar esse estado das coisas. A ideia não é queimar todas as partituras e CDs do Mozart e cancelar a música alemã. A questão é: a quem interessa continuar ensinando só um tipo de teoria musical e continuar dando mais destaque à música desses compositores em cursos superiores de Música se é evidente que a  imensa diversidade de músicas nos pede um olhar mais amplo (se realmente estamos interessados em entender as músicas e não um tipo só).

O reconhecimento desse viés e suas limitações nunca estiveram tão presentes e as mudanças já estão em andamento. Em 2017, a Universidade Federal do Pampa (onde orgulhosamente leciono) eliminou as disciplinas de História da Música (que, via de regra, se limita a ensinar a história da música europeia feita por homens brancos) e substituiu por “Músicas, histórias e sociedades”, uma mudança encabeçada por minha querida colega, a etnomusicóloga Luana Zambiazzi dos Santos. Logo depois, foi a vez da renomada Universidade de Harvard que eliminou a História da Música e a substituiu pelas disciplinas “Pensando sobre música” e “Escuta crítica”. Além disso, várias universidades vêm abandonando a tradicional “prova específica” de música que cobra exatamente essa teoria (e, também é comum cobrar que se toque o repertório) de origem alemã para ingressar no curso. Assim, os cursos de música vão ficando mais diversos e o conhecimento vai se tornando mais democrático e menos colonialista.

Quando você pensa em uma teoria musical colonialista, pode vir essa imagem na cabeça, mas não é bem assim.

Tem mais coisas pra explicar o por quê de os alemães ganharem essa marca de gênios da música? Vixe! Tem sim. Não falei de Reforma Protestante, não falei da hierarquização de instrumentos musicais (um piano vale muito mais do que um pandeiro ou um violão, que foi até crime no Brasil), mas esse texto dá um bom ponto de partida para uma discussão que ainda ganha força na área de Música e ganha cada vez mais reverberação na cultura popular com Youtubers como os gringos citados e, no Brasil, o canal do Thiagson, que eu recomendo seguir.

Ufa! E aí? O que achou? Críticas, sugestões e ofensas nos comentários, por favor e até o próximo. 

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8 comentários em “Por que os “gênios da música” são alemães? 5 razões para entender”

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  2. Concordo em boa parte com você. O juízo de valor atribuído a esses compositores tem que ser contextualizado: eles fazem parte de uma determinada tradição, dentre várias que existentes no mundo e existem razões sociais e históricas que ajudam a explicar sua categorização como gênios. Mas eu faria algumas ponderações: de fato no interior dessa tradição, eles tiveram uma produção do ponto de vista técnico (forma, construção melódica e harmonia) e estético que foram reconhecidas por seus pares em toda Europa e mudaram o modo de se pensar e compor música. Ou seja, sua entrada no cânone não se deve unicamente às condições sociais e políticas da época, mas também à força de tais obras dentro desse cânone. Além disso, o cânone europeu se impôs no mundo pela força dentro de todo o processo colonialista e o sistema tonal moldou e ainda molda boa parte da música que se faz no mundo. Então, faz sentido que se estude harmonia tonal e formas clássicas, porque elas estão presentes em boa parte das músicas produzidas no mundo. Agora, essas são só ponderações. Concordo inteiramente com o núcleo do seu argumento: a teoria européia tonal dos séculos XVIII e XIX é utilizada como régua pra julgar a música como se fosse um valor universal, que definitivamente não é. E mesmo músicas como o choro e samba que tem uma herança do tonalismo europeu não podem ser realmente compreendidas utilizando-se essa teoria clássica e seus padrões de gosto. Muito pelo contrário. O estudo da teoria musical e história da música precisam de um alargamento urgente.

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