Alguns anos atrás, tive a sorte de assistir a uma conferência do etnomusicólogo espanhol Polo Vallejo na qual ele falava sobre sua pesquisa sobre a música dos Wagogo na Tanzania (no continente africano). A pesquisa dele era daquelas “mim pesquisador, você nativo”, sabe? O cara nem sabia falar a língua deles. Teve que chegar, se apresentar (como eu não sei), dizer que queria conviver com eles por uns meses pra estudar a música deles, achar um cantinho pra dormir,… Já imaginou que deve ter sido um aprendizado e tanto, né?
E nesse período em que eles estavam se conhecendo e Polo aprendendo a língua dos Wagogo, um dos Wagogo perguntarou pra ele o que ele fazia no lugar de onde ele veio. Polo, ainda falando com dificuldade, respondeu que era professor de Música.
Os Wagogo caíram na gargalhada! Daquelas gargalhadas de segurar a barriga, sabe?
– Você é professor do quê? Perguntaram de novo.
Polo já estava achando que tinha falado algum palavrão sem querer. Não entendeu o por quê de estarem rindo, mas se esforçou de novo pra deixar bem claro que era professor de Música e não de outra coisa.
Gargalhadas mais fortes ainda! Eles não paravam de rir e, agora, já estavam chamando outras pessoas próximas para vir escutar o que aquele estrangeiro estava dizendo e cada vez que ele repetia era mais gargalhada.
Polo não entendeu e perguntou “por que vocês estão rindo?” e um deles respondeu que ser “professor de música” era algo tão estranho quanto ser “professor de comer”. Ninguém tem professor pra aprender a comer. Se aprende vendo os outros, tentando, experimentando… por que alguém teria um professor de música?
Note que o wagogo que conversou com o etnomusicólogo não disse que é estranho ensinar a comer. Todo mundo, em algum momento da vida, ensina alguém a comer (um filho, um irmão, etc.). Alguém precisa ensinar o modo como se pega comida (com talheres, com “palitinhos”, com a mão, etc.), precisa ensinar a identificar o que é “comível” pras pessoas em volta (vadiferenciar sabores, a mastigar bem a comida, etc. É claro que comer é algo que se ensina (e aprende) e os Wagogo sabem muito bem disso. A questão toda é existir a figura de um professor pra isso. A questão é imaginar que alguém seria tão bom em comer que seria reconhecido pelas pessoas à sua volta como um especialista, detentor de um conhecimento muito acima da média sobre comer e que ganha a vida ensinando esse conhecimento em troca de pagamento e, pior, tem quem pague. É isso que é estranho!
O legal dessa história é que a visão dos Wagogo nos faz parar pra pensar: um dia, na sociedade onde a gente vive, se riu muito das primeiras pessoas que resolveram que iam viver de ensinar música pros outros. Ter uma pessoa pra ensinar Música profissionalmente não é uma coisa “natural”. Alguém teve que inventar isso. E as pessoas à volta tiveram que ser convencidas de que aquele poderia ser mais um tipo de trabalho e que havia alguma vantagem em aprender música através de um professor em vez de aprender pela convivência: experimentando, errando, acertando enquanto se imita outras pessoas fazendo música.
Pois é! Esse artigo é sobre essas pessoas que se dedicam a ensinar Música e ganham a vida (ou parte dela) com isso. Mas esse ofício de ensinar Música não foi sempre o mesmo, não só porque as músicas mudaram muito nesses milênios todos, mas porque as relações entre as pessoas e as condições tecnológicas mudaram muito.
Por isso, eu separei aqui 4 coisas que mudaram bastante no nosso trabalho. Não é nem de longe uma história completa (você tá num blog, lembra?). São só algumas histórias pra mostrar como essa profissão se transformou com o tempo e de lugar pra lugar.
É disso que eu vou falar aqui, mas se você tiver interesse em saber mais sobre como se aprende Música sem a figura de um professor em diferentes culturas, eu indico os vídeos do projeto Growing into Music (Crescendo na Música, em português). Entra no site e escolhe de que países você quer ver vídeos de crianças aprendendo música (e tudo que ela envolve) “naturalmente”, ou seja imitando adultos, experimentando, criando, etc. Antigamente, o site tinha vídeos de seis países, mas hoje só estão disponíveis: Mali/Guiné, Norte da Índia e Azerbaijão.
Sumário
Relação pessoal entre quem ensina e quem aprende: diferença entre mestres e professores
Tanto o filme original (de 1984) quanto a segunda versão (de 2010), souberam retratar como a ideia de obediência é valorizada e o quanto é pedido que os discípulos (Daniel San no primeiro e Dre Parker no segundo) aceitem as condições que os mestres exigem para que lhes ensine Karatê.
Como a historiadora Joan Lane explica nesse livro aqui, a relação mestre e discípulo tinha (e, em vários lugares, ainda tem) como base a ideia de que o mestre se tornaria o pai do aprendiz por um período combinado entre eles. Por isso, o mestre recebia o aprendiz na sua casa (como mais um morador) e o pagamento para o aprendizado era o de servir o seu mestre. E quando eu falo servir, é servir mesmo!
Se você era um discípulo de um mestre de Música, servir poderia significar trabalhar nas colheitas, alimentar animais, limpar o “banheiro” da casa, carregar bagagens durante viagens,… todo tipo de coisa porque você é um servo. Era assim que você pagava o privilégio de poder conviver com o mestre e, pela convivência (acompanhando o mestre quando saía pra trabalhar, observando, imitando, fazendo pequenos trabalhos mais fáceis) aprender o ofício de músico. O tempo do contrato de mestre e aprendiz variava. Em 1407, o estatuto de uma corporação de menestréis na França previa um período de seis anos como aprendiz e só depois se poderia realizar as provas de proficiência que permitiam entrar na corporação na categoria de menestrel e, talvez um dia, chegasse a mestre, a mais alta patente.
A relação entre professores e alunos é outra. Aprender um novo ofício ou conteúdo com um professor, não é, aqui. sinônimo de servidão. Isso porque, diferente da relação mestre e aprendiz, os espaços de trabalho e de aprendizado são separados. Você não precisa ir até onde o mestre está se apresentando. O professor vem até você ou você vai até a casa dele (ou na escola de música ou conservatório) pra ensinar o aluno e, depois que a aula termina, cada um volta para a sua casa: o aluno com aprendizado e o professor com seu pagamento. Professor e alunos estão em condições de igualdade: um presta serviço pro outro em troca de pagamento. E como o aluno não está vivendo sob o olhar de um mestre, o professor precisa começar a ser criativo pra fazer o pouco tempo juntos render bastante em aprendizagem.
Registrar o som pra lembrar depois da aula
Outra coisa que mudou bastante com o tempo foi as formas de registro de som. Quando você não tem um mestre do seu lado o tempo todo pra você tirar dúvidas e ver tocando pra poder imitar, é preciso achar formas de registrar o som pra poder lembrar o que foi ensinado. A notação musical se desenvolveu muito pela distância entre professor e aluno, já que a partitura, por exemplo, era uma forma de registrar como a música deveria soar, o que ajudava muito quando o professor não estava do lado pra ser imitado.
E a partitura, que era um meio de se comunicar, acabou também virando um sinal de “distinção social”. Em uma época em que saber ler já era muito raro, saber ler música era ostentação e mostrava que você vinha de uma família que podia bancar uma educação privada especializada.
Quer queira ou quer não, essa ideia de que partitura é uma forma de expressar seu status social ainda é um dos motivos pelos quais há tanta gente ainda tão apegada a ela. Como qualquer tipo de escrita, a partitura é bem limitada e muitas outras formas de registro surgiram depois dela. Mesmo assim, ainda há muita gente que entende que ensinar Música é a mesma coisa que ensinar a ler música.
Mas a partitura não é a única forma de escrever música e já faz um tempinho que registrar o som está acessível pra uma boa parcela das pessoas. Passamos pelo gramofone, gravador em fita e hoje passamos o dia carregando gravadores de sons no nosso bolso.
Claro que pra um bom número de práticas musicais, ler partitura é importante (músicos de orquestra, por exemplo), mas não é nem de longe a maioria das práticas musicais. E, mesmo pra músicas do repertório clássico, a tecnologia digital deu acesso a outras formas de ensinar música.
De multiinstrumentistas a especialistas
Hoje em dia, o instrumento que tocamos é parte da nossa identidade como músico: eu sou violonista, mas há quem seja pianista ou clarinetista, etc. Grande parte da nossa educação musical acaba envolvendo a busca por um instrumento pra chamar de seu em uma relação “monogâmica”, mas isso é muito recente na nossa história e mesmo na história da música clássica europeia. Quem já leu biografias de J. S. Bach ou Mozart (pra ficar em dois exemplos) já viu como eles passavam do orgão de tubos, pro violino, desse pra viola, desse pro piano e assim por diante. Ninguém cobrava do Mozart que se decidisse se ele é pianista ou violinista porque “quem toca mais de um instrumento não toca nenhum direito”. Isso nem faria sentido na época, mas, com o tempo, a ideia de especialização foi se tornando uma marca de status social e a valorização de peças cada vez mais difíceis de tocar foi demarcando cada vez mais o terreno de quem se especializava o suficiente pra tocar certo repertório virtuosístico para o seu instrumento.
Assim, a ideia de músico especializado em um instrumento teve que ser inventada e muitas alterações tiveram que ser feitas no ensino pra que isso começasse a virar uma ideia comum. Pra se ter uma ideia, quando, em 1815, foi criado o cargo de mestre do exército português (e isso importa pra gente porque o Brasil era colônia ainda, então o exército português atuava aqui), a lei dizia que esse mestre contratado deveria ensinar a quatro soldados flautim, requinta, clarinete, clarim (trompete), trompa, trombone ou serpente. E essa seguiu (e segue) sendo uma prática comum nas bandas marciais.
A mudança precisou vir dos setores ligados à música das classes mais ricas e não foi fácil. Ainda no século 19 (1801 a 1900) a maior parte dos professores do Conservatório Imperial de Música do Rio de Janeiro (o primeiro conservatório do país e modelo para os que vieram depois) dava aula de vários instrumentos. O processo de pedir que se especializassem em um só instrumento levou décadas, mas, hoje, é algo bastante comum quanto mais o ensino de Música se aproxima do nível superior. Hoje, é super comum nos cursos superiores de Música do país que você faça vestibular para entrar no curso de violão ou no de piano ou no de contrabaixo, etc. E se o curso não for separado por instrumento, geralmente, você precisa escolher um instrumento assim que entra.
Essa é uma mudança e tanto. Músicos como Mozart certamente estranhariam bastante ter que escolher um instrumento só para estudar por 4, 5, 6 anos. Hoje, é absolutamente comum que escolas de Música vendam cursos de violão, guitarra, canto, bateria, já incentivando as pessoas a escolherem um instrumento. Não é um exagero dizer que praticamente todo o ensino de Música que oferecemos é orientado pela divisão entre instrumentos musicais.
Mas, cada vez mais, alternativas vão surgindo: a metodologia de ensino Musical Futures da educadora britânica Lucy Green é baseada na simples ideia de juntar vários alunos em uma sala com vários instrumentos e um aparelho de som e, basicamente, deixar a coisa rolar, deixando o professor no papel de quem observa e identifica que tipo de conteúdos eles precisam entender para conseguir tocar o que eles querem e aí faz pequenas aulas ensinando isso pra, logo depois, colocá-los em sala de novo. Outras formas de organizar o currículo do ensino de Música também aparecem separando os alunos por interesse em um determinado gênero. O falecido sambista Renatinho Partideiro organizou uma escola de samba de partido do alto, que é um tipo de samba onde se improvisa o que é cantado, inclusive a letra (como no repente nordestino ou no rap freestyle).
O Instituto Brincante (de Antônio Nóbrega e Rosane Almeida) também é um ótimo exemplo de outra forma de organizar o ensino de Música e muito mais. No Instituto Brincante se aprende vários gêneros (frevo, cavalo marinho, maracatu), mas se aprende a tocar e a dançar. Como diversas outras culturas também acreditam, aprender a tocar, cantar e a dançar não são processos separados e, no fim, um ajuda o outro.
Mas, claro, quem quer ensinar música e dança juntos como coisas super ligadas que são, encontra o problema de ter que lidar com a ideia de que a dança (ou grande parte das danças) é coisa de “mulherzinha”, o que nos leva pra
Questões de gênero pra quem ensina e quem aprende Música
Por causa do “risco de efeminização” e do risco de ser confundido com um músico profissional (alguém que precisa trabalhar pra sobreviver), uma boa parte dos cidadãos gregos achava bem importante aprender música, mas não “demais”. Ser um músico muito habilidoso poderia te fazer ser confundido com um escravo, então os cidadãos gregos, de alguma forma, dedicavam bastante esforço para deixar claro que não era nem escravo nem mulher.
Não conheço outros casos de assassinatos de professores de Música, mas, nem por isso, eles deixaram de ser vistos como ameaça. As vagas de trabalho pra professor de Música cresceram muito no mundo judaico-cristão após a invenção do piano (em 1711, mais ou menos), que era um instrumento símbolo de riqueza e o mais indicado para as mulheres (porque podiam tocar sem “exibir” seu corpo demais). Naquela época, quem tinha condições de pagar por esse tipo de serviço (e por um piano) eram os mais ricos, claro, e professores de música nunca foram dos mais ricos. Isso gerava também os seus problemas.
A procura por professoras mulheres era grande, já que a fama de professores homens ensinam jovens mulheres em suas casas não era das melhores para os pais que queria ver suas filhas “bem casadas” (leia-se, casar com um homem com grana e de família importante). A figura do professor de música que seduzia suas jovens alunas se tornou tão popular que passou a ocupar os romances escritos na época e as pinturas. Mozart mesmo foi um que se apaixonou por várias alunas, pra ficarmos em um só exemplo.
Pra finalizar
Esse foi só um apanhado de fatos históricos que juntei pra mostrar como a profissão de professor de Música mudou ao longo desses milênios. Essas histórias que eu contei estão todas nesse eixo “ocidental”. Não tem nada de exemplos da Ásia, África, Europa. Essa é uma limitação minha. Gostaria muito de poder dar outros exemplos, mas, por alguma razão, eu não as encontrei.Se você, leitor ou leitora, puder me ajudar a encontrar outras referências fora desse eixo, vou ficar muito feliz e se você comentar dizendo o que acho também.
Rafael Rodrigues da Silva é músico, pai e louco por bolo de chocolate. Ele também é professor do curso de Música da Universidade Federal do Pampa e foi professor de Artes em escolas públicas por mais de 6 anos. Doutor em Música e Mestre em Educação e curioso desde que se conhece por gente, adora pesquisar e pensar sobre como as músicas nos afetam como pessoas e como sociedade.
107 comentários em “4 mudanças no ensino de Música ao longo da história”
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