Qual o problema de religiosos definirem o que ouvir e tocar em sala de aula? Entre “cristofobia”, racismo e inclusão.

A cena é conhecida de professores/as de cursos de Música no ensino superior: um ou mais alunos/as em uma mesma sala de aula se negam a escutar, tocar ou cantar uma música cuja letra faz menção ou cultua entidades religiosas diferentes daquelas que acreditam. Quem já passou por um curso superior de Música no Brasil já ouviu ou presenciou uma história dessa.

Há quem diga que impasses religiosos como esse tenham se tornado mais frequentes nas últimas duas décadas nos cursos superiores de Música do Brasil, mas o fato é que ainda não temos dados sobre isso. Não há pesquisas sobre o quanto esse tipo de conflito já aconteceu, o quanto acontece na atualidade e como isso afeta as escolhas de repertório a ser escutado ou tocado em sala de aula professores/as de Música.

O fato é que, na prática, não se ensina Música sem músicas, assim como não é possível ensinar Direito sem leis nem Letras sem palavras. Qualquer professor que quer ensinar a tocar, ou compor ou identificar “estruturas” musicais ou até o contexto histórico e social de certas músicas precisa trazer exemplos de músicas que ilustram bem aquilo sobre o que estamos falando ou que proporcionam experiências musicais que serão importantes para o futuro profissional.

Não dá pra não usar música nenhuma. Não dá pra usar todas. É preciso escolher e escolher significa sempre deixar muito mais música “de fora” da aula do que dentro. O que os alunos religiosos que se negam a trabalhar com músicas de fora da sua fé pedem, na prática, é só uma coisa: que o potencial de uma música ofender um ou mais alunos religiosos seja mais um critério pra definir as músicas usadas em aula (além de todos os critérios musicais que professores de Música já usam). É pedir demais? Custa fazer concessões para manter todos os alunos à vontade em sala de aula e motivados pra aprender?

O pior é que custa. Mas esse é um impasse no qual, seja qual for a escolha, há muito custo pros dois lados.  Esse artigo é sobre esses custos e sobre como estamos falando de algo muito maior do que ofensas. Estamos falando de dois mundos que colidem de forma que se cria um conflito insolúvel. Um conflito no qual, a cada vez que se tenta unir os dois mundos, partes fundamentais de cada mundo se perdem.

E, aqui, a gente precisa reconhecer que o movimento de negar executar músicas de outras religiões vem, na sua enorme maioria (se não exclusivamente) dos cristãos e particularmente dos evangélicos neopentecostais. Claro, não temos dados seguros sobre isso, mas nos meus tantos anos de universidade, nunca ouvi nenhuma história de um aluno da Umbanda se negando a ouvir Missas de Bach. Todos os exemplos que eu ouvi vinham de cristãos (o que não quer dizer que não haja ações semelhantes do lado de lá do cristianismo, claro) e, mais precisamente, de cristãos se negando a ouvir músicas de religiões de matriz africana (Candomblé, Umbanda e o Batuque do Rio Grande do Sul). Por isso, vou usar exemplos relacionados ao cristianismo pra ilustrar esse texto, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado e acabar ofendendo a fé de alguém.

Faço isso simplesmente por acreditar que, quando temos “assuntos proibidos”, evitados para não gerar constrangimentos para um grupo de pessoas nas universidades, estamos abrindo mão de algo extremamente importante para a própria existência das universidades que é o livre pensamento. Não importa qual seja o assunto: quando se cria sobre ele um ar de “não mexe nisso aí” antes mesmo de ouvir o que temos a dizer, é porque ali tem algo fundamental pra entender quem somos e como as coisas funcionam naquele grupo. É assim que eu vejo. Posso estar errado, óbvio, e, então, vocês serão os juízes e juízas.

Alunos de Música cristãos que recusam a “música do mundo”

Eu sou ateu, mas sei o que é ser religioso. Tive a formação tradicional de uma criança nascida em família católica: fiz catequese, crisma, li muito a Bíblia, etc. e lembro com saudade do tempo em que eu sabia o que era se sentir membro de uma comunidade de pessoas que “falam a mesma língua”. Sei como costuma ser calorosa a recepção de novos fiéis, lembro como é reconfortante ouvir que sou especial, acreditar que minha vida tem um propósito claro e que, mais do que isso, que existe um ou mais seres capazes de ditar todo nosso futuro e que não há o que temer sobre todo esse poder porque esse(s) deus(es) me ama(m) e se importa(m) comigo (e aqui, eu estou usando exemplos que fazem mais sentidos nas religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Mas existem muitas outras, claro).

É muito bom se sentir especial e, em grande parte, é isso que a maior parte das religiões fazem. Elas nos ajudam a olhar pra esse mundo caótico, cheio de coisas maravilhosas e também de coisas horríveis demais e ver ele como parte de uma grande narrativa na qual eu sou um “humilde servo” entre bilhões de outros e, ao mesmo tempo, alguém para quem o(s) deus(es) tem algo muito especial reservado. A vida já é bem difícil de se levar quando você pratica uma religião que te mostra o quanto você é especial. Imagina sem! Então, eu entendo muito bem o que está em jogo, principalmente, porque sei que muitos religiosos têm medo de perder o que eu, como ateu, já perdi

Sim, as religiões têm essa enorme virtude de nos fazer sentir espiritualmente conectados com algo muito maior do que nós, mas não dá pra negar que também é um modo muito especial de criar uma comunidade de pessoas que cuidam uns dos outros. Quando você é religioso e quer contratar alguém, você dá prioridade pra “um dos seus”. Se alguém está passando por dificuldades, a comunidade se reúne pra oferecer ajuda. É algo que beneficia quem está na religião em vários sentidos (até econômicos) e poucas coisas são tão gratificantes quanto sentir que você e a sua família têm uma “rede de apoio” que vai ficar de olho em você pra garantir que você esteja bem e não se “desvie” para um caminho considerado como ruim (que vai fazer mal pra você, pra outros e vai contra aquele “projeto especial” que tá guardado pra você).

E, quando estamos em uma comunidade com um código de conduta bem definido, existe um esforço pra deixar clara a diferença entre o que é “certo” e o que é “errado” (e cada comunidade tem suas regras do que é certo ou errado). Quando alguém foge desse código com muita frequência, a comunidade não o trata da mesma forma e muito daquilo que torna a experiência de viver em comunidade muito acolhedora se perde. Os olhares e as palavras não são mais tão calorosas, as redes de pessoas que estavam prontas para o que você precisasse já não estão mais tão disponíveis. Não é fácil ser um “desviado” em uma comunidade voltada pra si mesma.

E quando um/a professor/a de Música pede pra um aluno cristão cantar uma música pra Xangô, por exemplo, é como se te entregasse um passaporte para ser um daqueles que se desviaram e ele sabe como os desviados são tratados. Claro que o aluno cristão teme ofender a seu deus, mas o fato de saber que alguém da sua comunidade pode ver ele cantando pra Xangô e fazer a notícia correr entra na conta também.

Isso explica em parte o por quê de ser tão comum que alunos e alunas justifiquem sua recusa a tocar músicas a outros deuses ou que não são da sua religião de modos confusos, sem que se consiga identificar bem qual é o argumento que o impede de cantar uma música pra um deus que ele nem acredita que existe (qual seria a diferença de cantar pra Papai Noel, nesse caso?).

O pesquisador da educação musical André Reck pesquisou na sua tese de doutorado como a experiência religiosas de alguns alunos de Música contribuíam pra sua formação. Em uma parte do texto, o autor aborda as situações em que alunos se recusam a executar certas músicas em certos lugares. Um dos entrevistados, relata o por quê de ter se negado a fazer uma apresentação em um bar organizada pra tocar músicas estudadas em aula:

Ah sei lá assim, eu não ia… eu ia fazer isso?… primeiro eu ia estar em oração, né porque não é… aquilo não é da minha prática, eu estaria sendo obrigado a fazer aquilo por uma obrigação de estudo.

O autor transcreve outras entrevistas com falas muito parecidas. Onde está o argumento? Qual é o problema de tocar em um bar? O fato é que o aluno não sabe explicar (e qualquer um que olhar pra essa fala acima e dizer que entendeu o argumento, me avisa que eu quero conseguir enxergar). E, mesmo não sabendo explicar, mesmo não sabendo articular ideias para demonstrar como ir a um bar pra tocar músicas ofenderia a seu deus ou se choca com a doutrina da religião que pratica, ele sabe que aceitar ir àquele bar é muito arriscado.

Na prática, ele sabe que tem muita coisa em jogo em torno dessa decisão. É preciso ter muita coisa em jogo pra dizer a um professor universitário que não vai tocar ou escutar uma música mesmo que isso prejudique sua intenção de se formar. É preciso uma força interna muito grande para levantar-se e dizer que, por mais que o professor com seu mestrado e doutorado em Música entenda que músicas como aquelas são importantes para a sua formação de músico, você (que nem formado é) entende que ela não é importante. É isso que nos leva pro lado de lá do conflito.

Professores de Música com alunos que recusam seu repertório

A Música é uma área de conhecimento que cresceu muito academicamente no Brasil, mas ainda está longe de ser reconhecida como uma área “legítima” como a Física, a Biologia, a Medicina ou o Direito. A ideia de que Música é uma área que se dedica a animar festas e eventos, como fosse um bobo da corte que é chamados às pressas quando o rei se sente entediado, ainda é bem forte. E há um grande conjunto de pesquisadores que se dedicam muito pra demonstrar pra sociedade que a pesquisa em Música é muito rica e diversa. É científica, mas também pode ser artística e ajudar muito a gente a compreender o mundo à nossa volta simplesmente por olhar atentamente pra esse produto humano que são as músicas.

E, quando um aluno ou uma aluna diz para o professor que essa ou aquela música são dispensáveis para a formação dele e que ele ou ela já sabem o que precisa ser estudado, é como se um aluno de Química dissesse pro professor “você não pode me obrigar a estudar nenhuma molécula que não seja composta de Sódio e Zinco”. Sódio e Zinco são uma parte minúscula dos átomos conhecidos. Qual a razão pra se jogar toda a enorme maioria de átomos da tabela periódica no lixo? E por que é você ou a sua religião quem decide quais são os átomos bons e maus ou apenas dignos de atenção?

Por ser uma área de conhecimento, não é possível ser formado em “Músicas que eu gosto de ouvir” ou “Músicas que a minha religião aceita”, assim como não se pode ser formado em “Química do Zinco e do Sódio”. Quando alguém se dispõe a cursar um curso superior pode até ser que, em sua cabeça, é só uma forma de conseguir um diploma pra ter melhores oportunidades de emprego, mas não é esse o propósito de um curso superior. Um curso superior, em teoria, só faz sentido na medida em que dá oportunidades para que os/as alunos/as tenham acesso a uma parte significativa do conhecimento mais avançado disponível naquela área e nas suas subáreas (no caso da Música, a Musicologia, a Educação Musical, a Psicologia da Música, a História da Música, etc.).

E quem define o que é o “conhecimento mais avançado”? Assim como religiosos definem o “padrão de qualidade” do conhecimento teológico que circulará na sua igreja, os médicos definem os padrões de qualidade das suas práticas e os marinheiros definem os padrões de qualidade das técnicas de navegação, quem define quais são os conhecimentos mais significativos na universidade são os acadêmicos. E esses padrões de qualidade estão sempre em transformação porque a cada ano um caminhão de novas ideias e correntes aparecem e os acadêmicos precisam decidir coletivamente quais são mais ou menos relevantes para aquela área. Na Física, Isaac Newton era o grande “padrão de qualidade” pra explicar a gravidade até Albert Einstein aparecer com outra forma de explicar. É assim que o conhecimento avança na academia: a abertura pra novas ideias precisa ser constante pro conhecimento sobre as coisas avançar.

E as universidades sempre estiveram entre as instituições mais abertas (para o padrão de abertura de humanos, com seus preconceitos, egos e medos). Só não foi abertura quando a impediram de ser aberta, ou seja, quando haviam instituições de fora da universidade dizendo o que podia ser dito ou pesquisado nas universidades. Não foram poucas vezes que políticos, militares e outras forças sociais colocaram limites sobre o que podia ser pensado nas universidades, mas uma coisa é incontestável: ninguém meteu mais o bedelho querendo censurar o que se diz e pensa nas universidades do que os religiosos.

Galileu Galilei, Copérnico, Giordano Bruno estão entre as centenas de pesquisadores e pesquisadoras que tiveram que escolher entre estar certo e morto ou vivo e tolerando modos de entender o mundo que estavam simplesmente errados. Não havia a opção número 3. E a única coisa que os impedia de estar certos e vivos foi a religião. O mundo teve que conviver por séculos com formas simplesmente erradas de entender como as coisas à nossa volta funcionam porque áreas do conhecimento inteiras precisavam estar muito atentas para evitar ofender religiosos.

Ofender religiosos já foi sinônimo de ser queimado vivo, torturado e todo tipo imaginável de punição. Hoje não é. O celular na sua mão, o remédio que você toma quando tem dor, as vacinas que te impedem de ver familiares com poliomielite hoje, os automóveis que poupam um tempo precioso da sua vida e a água que jorra quando você abre a torneira só foram possíveis porque havia pessoas livres o suficiente pra experimentar, criar novas soluções, explicar (e ouvir) novas ideias e considerar que aquilo que vivemos hoje pode ser diferente e diferente pra melhor em algum sentido.

Hoje, muitos professores/as de Música pensam duas, três, muitas vezes na hora de apresentar modelos musicais que fogem da lógica daquilo que é entendido como música “erudita”, ou música “séria” ou “artística” (que é uma forma de se referir à música cristã ou de cristãos, salvo raras exceções) ou da (ainda) chamada “música folclórica” (entendida como a música dos “selvagens bonzinhos” e burros demais para representar uma ameaça) justamente para não se incomodar com religiosos que se ofendem. E o que se perde com isso?

Bem, considerando que os cristãos representam um pouco menos que um terço da população mundial, perdemos só dois terços do planeta. O que te parece? Vale a pena admitir perder dois terços da música do planeta pra não ofender uma parte muito pequena daquele um terço cristão? E vale a pena seguirmos entendendo que ensinar só uma teoria musical (aquela oriunda das práticas cristãs) entre as centenas que há é o suficiente para uma área de conhecimento minimamente legítima? Como explicaríamos o critério dessa seleção?

“Cristofobia”, inclusão e ensino de Música

Um ou mais cristão se negando a cantar uma música em uma disciplina do curso de Música em uma universidade ou faculdade é algo que acontece com alguma frequência e acabou se tornando matéria do jornal O Globo em 2019 (também reproduzida aqui). A matéria relata o conflito ocorrido quando a professora de canto Andrea Adour da UFRJ propôs a uma de suas turmas o estudo de músicas cujas letras mencionavam Xangô, Obaluayê e outras entidades das religiões de matriz africana. E olha que não estamos falando de músicas usadas em rituais (os chamados pontos), mas, sim, de peças de compositores como Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Francisco Mignone e outros que são a base da nossa música de concerto (e não cultuavam esses deuses). Imagina se estivessem estudando pontos do Candomblé mesmo!

A parcela mais fundamentalista dos cristão (uma parcela bem pequena, por sinal, mas bem barulhenta) logo se ofendeu com a repercussão da matéria e acusou a UFRJ e o jornal de “cristofobia”. Vários cristãos se manifestaram em forma de texto e houve até um artigo que partiu pra discussão jurídica com um título bastante incisivo: Eu, você e qualquer aluno podemos deixar de cantar uma música por motivos religiosos no Brasil!

No artigo, o autor diz

…todo mundo já sabe que a laicidade brasileira e a Constituição da República garantem a escusa de consciência por motivos religiosos e/ou filosóficos. Entretanto, parece, incrivelmente, que não somente os professores e alunos da UFRJ  não sabem disto, como também alguns componentes da grande mídia, que tratam do assunto de forma a induzir o leitor a taxar os alunos como preconceituosos. Ou, o fazem sabendo, para vender jornais…

Concordo plenamente com o texto que ninguém pode te obrigar a cantar uma música que te ofenda de algum modo (e, nesse sentido, que sorte a nossa não ter ninguém com uma arma na nossa cabeça nos obrigando a fazer isso). Mas, por outro lado, um religioso pode obrigar um curso universitário a alterar o seu currículo por motivos religiosos?

Nós estamos acostumados a ver disputas para proibir o ensino da evolução nas aulas de Biologia nas escolas ou a obrigatoriedade de ensinar o criacionismo nelas. Essa é uma discussão que merece mesmo alguma atenção, já que no Brasil frequentar a escola é obrigatório. Agora, o que não se vê é alunos cristãos se negando a estudar a evolução no curso superior de Biologia. Por quê essa diferença?

A diferença é que a discussão entre criacionismo e evolução simplesmente não tem espaço na área de Biologia e não vai ter enquanto os criacionistas não apresentarem alguma evidência de criação divina que não seja o texto da Bíblia. A teoria da evolução sempre foi potente pra explicar as diferentes espécies de seres vivos, mas, principalmente, a partir da decodificação do genoma, ela é simplesmente um fato. Ou seja, se você não acredita em evolução, você simplesmente não estudou o suficiente e a área de Biologia tem muito mais o que fazer e descobrir do que gastar anos da sua vida voltando eternamente pra esse elemento tão básico do conhecimento biológico.

Se um estudante se negar a estudar evolução no curso de Biologia, provavelmente vai ser aconselhado a procurar outra carreira ou simplesmente não vai passar nas provas. A Biologia não está disposta a negociar fatos para não ofender aqueles que se candidataram a seguir a carreira de biólogo porque não vale a pena abrir mão de todo um ramo do conhecimento pra não ofender o João da igreja X. A linha que define a fronteira entre o que é conhecimento científico ou especializado e o que é crendice ou superstição está bem traçada. Simples assim.

E na Música? Bem, a Música está em um período da sua existência que, ao meu ver, mostra um número cada vez maior de pessoas incomodadas com o quão fraca é a nossa linha que separa conhecimento científico ou especializado e crendices ou mesmo modos de ver as músicas que são, na prática, religiosos. Não há argumento logicamente convincente para termos no Brasil do século XXI cursos de Música cuja base do repertório é de músicas de concerto europeia de origem cristã e seus prolongamentos que não ofendem cristãos.

Nada justifica que no curso de Música, de onde saem também os professores e professoras de Música que vão dar aula na disciplina de Artes nas escolas de um país formado por homens cristãos estuprando mulheres indígenas e negras, seja ensinada só a herança musical dos que cometeram a violência. Nada justifica que um/a professor/a de Música atuando nessas escolas se dê o direito de não ter contato com a música afro-brasileira, inclusive a religiosa. Nada justifica que, em nome de uma inclusão de parte dos religiosos cristãos no ensino superior de Música se promova uma exclusão de milhões de crianças afro-brasileiras impossibilitadas de ver a música de seus ancestrais representada entre os conhecimentos escolares que fazem parte da formação das novas gerações. A universidade não tem (ou não deveria ter) esse direito e nem os religiosos.

Apesar disso, em um mundo repleto de sistemas musicais dos mais variados, nossa formação é voltada pra entender e praticar um ramo de músicas apenas e, claro, como “Narciso acha feio o que não é espelho”, ela vira nosso parâmetro de “qualidade” e “beleza”. Nenhum problema se fosse um curso de “Música de concerto” ou “Música Erudita” (como tem a USP, por exemplo), mas chamar esse curso de “Música” é como o curso de Química só estudar os gases nobres de todos os elementos conhecidos que compõem a tabela periódica.

Mas essa é apenas a visão de um pesquisador da área de Música. Cabe à área coletivamente definir o quanto está disposta a negociar dos conhecimentos que são a base dessa área em nome da inclusão de um certo número de religiosos. Mas também há uma escolha que cabe aos músicos religiosos (que se multiplicam rapidamente também porque as igrejas têm sido um espaço muito importante de formação musical pra muita gente): quanto cada um deles/as está disposto a abrir mão da sua doutrina religiosa e da convivência que tem com a comunidade da qual fazem parte para estudar tudo aquilo que a área de Música tem pra lhes oferecer. Assim como você não pode entrar no curso de Direito e dizer que só vai estudar Direito Romano ou entrar na Arquitetura e dizer que só vai estudar como projetar sobrados, é preciso estar disposto a estudar Música, mesmo que isso envolva criar conflitos na comunidade onde você vive.

Não é uma escolha fácil. Não é uma escolha que se possa realizar sem frustrações e sem abrir mão de coisas que são importantes. Escolhas como essas são dolorosas, mas muitas vezes na vida é preciso reconhecer que existem mundos que se chocam e que são inconciliáveis e que não podemos navegar entre eles sem estar aberto ao que ambos nos têm a oferecer. Sim, é clichê, mas é verdade: a vida é feita de escolhas e, pra citar a canção de Mick Jagger e Keith Richards dos Rolling Stones, “você não pode ter sempre só o que você quer, mas se você tentar, às vezes, você pode se dar conta que você tem o que é necessário (pra você)”.

Assine gratuitamente

3 comentários em “Qual o problema de religiosos definirem o que ouvir e tocar em sala de aula? Entre “cristofobia”, racismo e inclusão.”

  1. As someone who is passionate about staying informed on current events and social issues, I can confidently say that this article is one of the best I’ve read in a long time. The author’s writing is both substantive and engaging, and their ability to provide unique insights and perspectives on complex issues is truly impressive. What I appreciate most about this article is its commitment to presenting factual and balanced perspectives, which is increasingly rare in today’s media landscape. Overall, this article is an invaluable resource for anyone looking to deepen their understanding of the world around them.

Deixe um comentário