Mozart proibidão – tire as crianças da sala pra ouvir essa música!

A letra da música que vocês estão prestes a ler não foi composta pelo Mr. Catra, nem pela Tati Quebra-Barraco e nem é tocada por alguma banda de Axé com dançarinas e dançarinos com “coreografias sensuais”. 

Foi composta por ninguém menos que Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791), o grande compositor alemão.

Leck mich im Arsch! (no original em alemão) 

Leck mich im Arsch!

Laßt uns froh sein! 

Murren ist vergebens! 

Knurren, Brummen ist vergebens, 

ist das wahre Kreuz des Lebens, 

das Brummen ist vergebens, 

Knurren, Brummen ist vergebens, vergebens! 

Drum laßt uns froh und fröhlich, froh sein!

Lambe meu c*! (tradução minha).

Lambe o meu c*!

Vamos ser felizes!

Não adianta reclamar!

Não adianta reclamar, protestar

É a verdadeira cruz da vida

Não adianta reclamar

Não adianta reclamar, protestar!

Então, vamos ser felizes e alegres, felizes! !
Claro que se eu parasse o texto por aqui encerrando com alguma conclusão bombástica no estilo Datena (“Compositor é flagrado usando partituras para espalhar obscenidades” ou algo assim) esse post seria um sucesso danado.
Como seria minha vida com posts sensacionalistas. Imagens meramente ilustrativas.

Mas aí você não estaria lendo o Música para Curiosos. Aqui, a gente mostra a música, mas sempre apresenta o contexto. Ou seja, a gente mata a cobra e mostra o pau sem medo da verdade (esse texto tá ficando algo entre o Datena e o Ratinho agora, só pra contrariar).

O lance é que o Mozart compôs essa música provavelmente volta de 1782, quando tinha mais ou menos 26 anos de idade. Tinha acabado de mudar de vida completamente ao abandonar um emprego relativamente estável de músico da corte de Salzburgo (um cargo sem nenhuma pompa, mas que seguia os passos do seu pai Leopold, também músico), onde obedecia diretamente ao príncipe: tocava o que ele pedia, compunha o que ele pedia, quando pedia, na hora que pedia e ganhava pouco reconhecimento pelo seu trabalho, além de ter dificuldades para divulgar seu trabalho em círculos maiores. Em termos sociais, nada muito acima do status social do auxiliar de cozinha da corte, como Tim Blanning explica em seu livro O Triunfo da Música que você pode adquirir O triunfo da música“>aqui.

 Pintura de 1852 (depois de Mozart) onde Frederico II (rei da Prússia) toca flauta enquanto G. P. E. Bach (músico da corte) o acompanha no cravo (ou piano). Como vocês podem ver, festa bombando na corte prussiana e músico da corte não tem hora pra ir embora.

 

Mozart chutou o balde com gosto decidindo viver em Viena, mesmo sem ter conseguido emprego na corte vienense. Decidiu viver vendendo ingressos para os concertos que realizava, cobrando por pequenas apresentações para os mais ricos da cidade (geralmente nos salões de suas mansões ou castelos) e dando aulas de piano. Parece normal um músico viver assim, né? Sim. Hoje é! Mas, naquela época, tomar essa decisão era quase como escrever uma carta de suicídio. Não havia registro de outros músicos fazendo isso. Todos eles estavam empregados em alguma corte ou simplesmente não estavam trabalhando como músicos (como ocupação principal e com algum status social).

Só conto essa história pra você entender que o Mozart já não era lá um grande seguidor de convenções sociais (e, quanto mais você conhece a biografia dele, mais claro isso fica). Essa é a primeira coisa pra se ter em mente e não vou me alongar nela, mas, se você ficou curioso(a) e quer saber mais sobre essa história, super recomendo o trabalho clássico da Sociologia da Música escrito pelo sociólogo alemão Norbert Elias no livro Mozart: sociologia de um gênio (que você pode adquirir aqui)

Vai dizer que o Norbert Elias com essa simpatia toda não é um cara que você pararia pra ler!
Livro do Elias na tradução pro português (recomendadíssimo)

 A segunda é que referências como essas referentes a ânus e fezes eram bastante comuns naquela época (você encontra em uma peça de Goethe e em outras músicas como essa de Michael Haydn). Também é importante entender que o modo como a cultura alemã lida com fezes é significativamente diferente da nossa. Eu vivi na Alemanha (na cidade de Kassel, uma cidade grande para os padrões da Alemanha) entre 2009 e 2010 e vi duas vezes pessoas (um homem e uma mulher) fazerem cocô em algum canteiro na calçada no centro da cidade (não eram moradores de rua) sem causar nenhuma comoção perceptível entre os passantes. Claro que não é algo que você vê todos os dias, mas o que eu vi causaria aglomerações em torno da pessoa no Brasil e não causou nem olhares constrangidos lá.

 É claro que eu não vou colocar uma imagem de alguém fazendo cocô na rua da Alemanha. Esse é um blog de respeito, ora!

 

Se fezes não causaram grande estranheza no século vinte um (XXI), quem dirá no século dezoito (XVIII), mas o Mozart é bem conhecido hoje em dia pelo seu humor cheio de referências sexuais e escatológicas. Inclusive, artigos acadêmicos foram publicados discutindo sua saúde mental e até considerando a possibilidade de ele ter distúrbios como Síndrome de Tourette. Não é meu ramo e não vou entrar nesse assunto, mas o fato é que essas referências são facilmente encontradas em dezenas de cartas que ele enviou para sua prima, sua irmã e seu pai e em outras músicas com texto semelhante (analisadas, em inglês, aqui), geralmente na forma de cânones pra saber o que é um cânone, leia isso ou, se pedir com jeitinho, faço um post dando uma visão mais ampla).

A questão é que, como concluiu o musicólogo David Buch aqui, tomar os cânones “proibidões” (para os padrões do Brasil de hoje) de Mozart como indicativos de sua personalidade é forçar a barra. Principalmente, porque, como ele analisou, seus familiares usavam vocabulário semelhante, vários compositores próximos a ele na época compuseram músicas ainda mais “picantes” e essas canções serviam mais como canções de diversão, geralmente para aquele momento das festas em que o pessoal já tinha bebido umas tantas. Naquele tempo, os cânones funcionavam bem pra essa finalidade cômica e esse tipo de cânone servia mais para os encontros privados (entre conhecidos e familiares) do que pra ser executados em qualquer contexto.

Essa música de Mozart foi publicada após a sua morte, quando sua esposa juntou seus manuscritos e ofereceu para uma editora de partitura. Há quem duvide da autoria dessa versão específica da música, já que, segundo esse verbete da Wikipedia, uma versão diferente apareceu em 1991, mas como não consegui acessar as fontes citadas ali, fica aí de curiosidade o fato de existir esse tipo de discussão. 

De qualquer forma, vale ouvir a música e sugiro essa versão de um grupo que, infelizmente, não sei identificar nem dizer de onde é (sei que alemães não são), mas gostei do astral mais de brincadeira dessa interpretação (acredite que há muitas versões dessa música com músicos cantando muito sérios). A partitura você encontra no IMSLP em três vesões diferentes

Se conhecer outras versões interessantes, comenta aí.

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2 comentários em “Mozart proibidão – tire as crianças da sala pra ouvir essa música!”

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