Mulheres compositoras: da invisibilidade até a organização coletiva (com dicas para conhecer mais compositoras).

Você consegue nomear agora, de cabeça, cinco compositoras de música? Difícil, né? Ou, pelo menos, não é tão fácil quanto nomear compositores. E, se a gente for pro lado da música clássica europeia, a coisa só piora.

Isso é uma prova de que mulheres não compõem tanto quanto homens, não é?

Tá bom, elas até compõem, mas é que elas não são tão boas quanto os homens, não é?

Tá, mas, então, se temos bastante mulheres compositoras e elas são tão talentosas quanto homens, por que é que a gente não sabe nomear tantos nomes de compositoras quanto de compositores?

Essa é uma pergunta que vem chacoalhando o universo da pesquisa em música pelo menos desde a década de 1990. Foi nessa época que pesquisadoras como Susan McClary, Lucy Green e Richard Leppert começaram a fazer com que essa pergunta ficasse cada vez mais presente entre os pesquisadores e nos cursos de Música em universidades.

Era o feminismo e os estudos de gênero entrando com tudo no mundo da Música e ampliando muito a nossa visão do que é estudar música. Bateu tão forte que até deu início ao que hoje chamamos Nova Musicologia.

Muita gente torceu o nariz. Muitos reclamaram dizendo que estudar música de verdade é só quando você olha para o “micro” (as notas usadas na música, a forma, o tipo de gravação, etc.), mas o fato é que o feminismo e os estudos de gênero ajudaram a consolidar o que já vinha sendo dito faz tempo (mas sem muita popularidade): estudar o contexto social em torno da produção da música é tão importante pra pesquisa em Música quanto estudar notas, acordes, formas, etc.

Para muitos, pesquisa em música “de verdade”, só acontece quando você baixa a cabeça pra olhar a partitura e esquece tudo o que acontece em volta dela.

Mas o que trouxeram de novo? O que essas pesquisadoras e pesquisadores descobriram é que, apesar do enorme número de compositoras, ao longo da história da música, por diversas razões sociais (que dariam vários outros posts), o holofote foi sendo tirado das mulheres compositoras e colocado em compositores que, claro, eram muito talentosos, mas estavam muito longe de serem os únicos compondo.

O fato é que sempre houveram mulheres compositoras aos montes só que, como não se falava delas e seus nomes e suas obras não eram conhecidos, foi preciso que muita gente se organizasse pra divulgar o trabalho dessas mulheres e incentivar novas compositoras a mostrar seus trabalhos.

Iniciativas que dão visibilidade para compositoras e seus trabalhos

Hoje, é possível encontrar listas de mulheres compositoras de música clássica europeia desde a Antiguidade até agora com links para a biografia de cada uma (se você não se vira no inglês, ativa teu Google tradutor aí). Esse outro site também criou uma lista com o mesmo propósito. Se você quiser escutar elas (ou boa parte delas), vale dar uma ouvida na Playlist disponível no Spotify que reúne mil e duzentos anos de composições feitas por mulheres na música clássica europeia (desde música sacra até a música de concerto).

Clara Schumann (1819 – 1896) é o exemplo mais citado de instrumentista e compositora que teve sua carreira comprometida em diversos aspectos. Apesar do enorme talento, por muito tempo foi conhecida apenas como esposa do compositor Robert Schumman.

Uma lista mais ampla tem sido criada por um site francês com colaboradores(as) do mundo todo no qual você pode pesquisar por nacionalidade e vai ver, claro, nossa Chiquinha Gonzaga ao lado de outras grandes compositoras brasileiras (usa o tradutor de novo). É legal buscar por exemplo quem foram as compositoras da África do Sul mais reconhecidas, por exemplo (pega o nome no site e busca no Spotify ou no Youtube e pronto). Já o Instituto Piano Brasileiro criou uma playlist no Youtube só com compositoras brasileiras para piano solo (com a partitura). Já a minha amiga Thaís Nascimento gravou um disco dedicado às compositoras brasileiras pra violão solo.

Há também listas de mulheres que compõem trilhas para filmes em Hollywood, um assunto que ficou em alta no ano passado quando a compositora islandesa Hildur Gudnadóttir ganhou o primeiro Oscar de Melhor trilha sonora dado a uma mulher pelo seu trabalho interessantíssimo no filme Coringa (que você pode ouvir aqui).

Hildur Gudnadóttir ao receber o Oscar em 2019 disse em seu discurso: “Às meninas, às mulheres, às mães, às filhas que ouvem a música borbulhando dentro de si: expressem-se! Nós precisamos ouvir suas vozes”.

Mas, quando a gente chega no campo da música popular, aí é que já tá bem claro o quanto elas não devem nada a nenhum barbado. A atuação das mulheres como compositoras na música popular, com frequência, é responsável por muitas das mudanças drásticas que acompanhamos há muito tempo nesse ramo. Madona, Angela Ro Ro, Pati Smith, Rita Lee, Dona Ivone Lara, Björk, Beyoncé, Lia de Itamaracá, Adriana Calacanhoto, Zelia Duncan, Pitty, Ana Carolina, Lady Gaga… Vixe! Esquece de listar todas aquelas que, além de grandes compositoras, ajudaram a quebrar barreiras sociais fazendo composições.

Mesmo assim, existem playlists pra lembrar a gente que elas não devem nada a nenhum barbado, como essa só de compositoras brasileiras.

E, com toda essa produção, ainda é pouco comum que as compositoras mulheres ganhem tratamento igual ao dos homens no mundo da música. Uma pesquisa realizada pelo Donne analisou as músicas executadas em 1445 concertos de música clássica realizados em 2019 e, desses, apenas, 76  concertos incluíram pelo menos uma música de uma compositora.

Coletivos de mulheres musicistas e compositoras

E, nesse mundo musical ainda bastante masculino, conseguir igualdade de condições para as mulheres mostrar seu trabalho ainda demanda muito esforço e união. Isso não é só pra mulheres compositoras.

Desde a década de 1990, tem sido cada vez mais frequente que as orquestras façam seleção de músicos onde os candidatos e candidatas tocam para a banca examinadora de trás de uma cortina para evitar que o fato de saber se é um homem ou uma mulher (ou preto, branco, asiático…) tocando influencie a escolha. Um estudo feito com dados desse tipo de seleção indicou que a “seleção às cegas” aumentou significativamente (50% a mais) as chances de mulheres serem contratadas. Apesar de esse estudo ter sido recentemente contestado pela forma como usou os dados estatisticamente (ver aqui, por exemplo), o fato é que a questão segue na pauta das discussões sobre a predominância masculina na música clássica principalmente.

Trombonista se apresenta para os jurados por trás de uma cortina preta na Escola de Música da Universidade de Yale (EUA).

E, depois de entrarem nas orquestras, o trabalho para as mulheres segue tendo seus obstáculos extras, quando comparado a seus colegas homens. Em 2019, na onda do movimento #metoo (de denúncia de casos de violência sexual e assédio nos mais variados espaços profissionais), as orquestras não ficaram de fora. Diversos casos de regentes cometendo abusos sexuais contra musicistas começaram a aparecer e regentes e diretores foram afastados de orquestras, isso sem falar nos diversos casos de musicistas na música popular que sofreram abusos de produtores, empresários e outros (o caso mais conhecido foi o de Lady Gaga que decidiu se manifestar publicamente). 

O fato é que, por mais que esse não seja um assunto muito comentado publicamente, as evidências de que o mundo da música tende a ser um espaço pouco “amigável” para as mulheres vêm sendo mais noticiados e mais comentados. Parece pouco, mas eu não conseguiria citar nenhum outro período histórico em que a vida de homens com muito poder (econômico e/ou político) tenham sido tão negativamente abaladas por causa de seu envolvimento em algum tipo de agressão e/ou preconceito com as mulheres Você conseguiria?

Pra combater essa predominância masculina e esse ambiente aversivo, iniciativas como a da Orquestra Sinfônica de Mulheres do Rio de Janeiro, o Sonora – Festival Internacional de Compositoras ou da Associação de Mulheres Compositoras do Irã chamam a atenção para essa desigualdade e divulgam o trabalho de musicistas dentro da música clássica.

Sim, é esse Irã mesmo. Onde mulheres que não respeitam as leis islâmicas (não usando véu sobre a cabeça em público, por exemplo) podem pegar 10 anos de prisão. Lá também há compositoras produzindo e lutando pra mostrar seu trabalho.

Outros gêneros musicais com reconhecida predominância masculina como o samba vem também tendo seus espaços de promoção do trabalho das mulheres como o Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba que costuma homenagear a cada ano uma compositora diferente.

Samba Negras em Marcha (São Paulo) é um dos grupos de mulheres sambistas que divulgam as composições de compositoras

Enfim, muitos e muitos projetos vêm pintando a cada ano e sabe o que é mais legal? O mais legal é que eu tenho certeza que não cheguei nem perto de listar todas as iniciativas e todas as compositoras e nem era esse o objetivo desse post. O objetivo, como sempre aqui, é atiçar sua curiosidade e te incentivar a buscar mais, se você quiser, claro.

Outro objetivo (bem mais audacioso) é dar mais uma mãozinha nesse grande movimento que incentiva mulheres a enfrentar os muitos obstáculos e preconceitos para se atirar nesse lindo universo da composição musical (um universo que eu incentivo todos a se envolver aqui). Existem até iniciativas específicas como oficinas de composição para mulheres como essa aqui criada pela musicista Clarissa Ferreira pra incentivar o surgimento de novas compositoras.

Mas o legal mesmo é que essa história só vai continuar, de preferência, com cada vez mais mulheres com a mão na massa, trazendo músicas novas pra gente curtir.

Se você conhece outras iniciativas e trabalhos importantes para serem citados, comenta aqui.

Contribuições de leitores e leitoras após a publicação deste artigo

Nada como ter leitores e leitoras atento/as e generosos/as que nos ajudam a apontar o que faltou. Reuni aqui no fim do artigo algumas contribuições que vieram através dos comentários (e seguirei acrescentando, conforme forem comentando), mas, se você preferir, pode ir nos comentários e acompanhar a conversa como se deu.
Didier Guigue, professor de Musicologia e Sonologia da Universidade Federal da Paraíba, mencionou o trabalho de Tânia Mello Neiva, que foi orientada por ele no doutorado em Música. Você pode ver parte das publicações dela sobre música, compositoras e feminismo aqui.
A leitora Letícia indicou o trabalho da historiadora Carô Murgel que vem construindo um levantamento impressionante de compositoras chamado de Cartografia da Canção Feminina, que vale muito a pena ser explorado, mesmo estando em construção.

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7 comentários em “Mulheres compositoras: da invisibilidade até a organização coletiva (com dicas para conhecer mais compositoras).”

  1. Super instigante e informativo esse post! Parabéns por dar visibilidade à temática do feminismo no campo da musica, pelo viés da composição. Adorei!!!

    1. Letícia, muito obrigado por indicar o trabalho dela. Por causa do trabalho dela (e do seu comentário) resolvi criar uma pequena atualização do artigo disponibilizando links a partir do que foi comentado. Mais uma vez, obrigado pela generosidade de fazer esse comentário.

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