Uma música que dura 639 anos continua sendo música?

Esse dia 05 de setembro de 2020, foi um dia especial para a comunidade de pessoas que curtem a música experimental. Nesse dia, houve a 15ª mudança de acordes na música “ORGAN/ASLSP,” que está sendo tocada desde 2001 e só vai terminar no ano 2640. A próxima mudança de acorde só acontecerá no dia 02 de fevereiro de 2022. Mas como é possível?

Eu sei que você já conheceu pessoas que reclamaram que a música Faroeste Caboclo do Legião Urbana é tão longa que não dá pra decorar a letra e talvez conheça alguém que teve condições de assistir uma ópera do Wagner que dura entre duas e três horas (como O anel dos Nibelungos) e saiu, digamos, meio cansadinho. Mas e se houvesse uma música tão longa que você jamais conseguiria ouvir até o fim dela? Poderíamos seguir considerando ela música?

E se, para tocar essa música, fosse preciso muitas gerações de músicos, de forma que o tataraneto do músico (ou da musicista) que começou a tocá-la poderia até ajudar a tocar uma parte da música, mas, certamente, também vai morrer sem ouvir o final da música? Podemos chamar de música nesse caso?

E se podemos (ou não) chamar essa apresentação de música, como essa experiência pode nos ajudar a compreender o que é música e o que não é? Como essa experiência pode ajudar compositores, ouvintes e filósofos da música a pensar sobre as possibilidades de uso do tempo quando se cria uma peça musical?

Pra quem não trabalha com música, esse tipo de questão parece mais um sinal de que a pessoa precisa procurar um psiquiatra urgente do que algo que faz mesmo diferença pra vida das pessoas. Mas, pra quem é da área, esse tipo de questão é muito interessante porque explora justamente os limites daquilo que é a nossa matéria-prima, afinal, quem faz música geralmente se preocupa bastante com a forma como quem escuta vai receber todas as informações sonoras que ela trás.

E são essas perguntas que têm motivado um grupo de  pessoas entre organistas, construtores de orgãos, musicólogos, filósofos e teólogos a realizar a performance musical mais longa da história: a música “ORGAN/ASLSP,” de autoria do compositor estadounidense John Cage (nascido em 1919 e falecido em 1992), composta em 1987 para orgão de tubos.

O orgão de tubos é um instrumento de teclado como o piano ou o teclado elétrico. O instrumento tem pedais com os quais se pode tocar melodias com os pés (o que não tem no piano, por exemplo) e a forma de produzir som, que é através dos tubos de metal que você vê na imagem.

Passados 5 anos depois da morte do autor da peça, esse grupo se reuniu em um encontro de organistas na Alemanha para pensar juntos sobre as possibilidades e as consequências de se seguir à risca o que John Cage indicava na partitura: “Toque o mais lento possível”.  A cidade escolhida para a performance foi a de Halberstadt, também na Alemanha, lugar onde foi instalado o primeiro orgão de tubos da história em 1361 e conhecida (em um certo apelo turístico) como a cidade do orgão na Alemanha, por isso a longa da execução acaba chamando ainda mais turismo pra cidade. Desde a instalação daquele primeiro orgão (1361) até o momento em que a peça começou a ser preparada em 2000, havia se passado 639 anos e foi essa a razão dada pelos organizadores pelo fato de a peça durar o mesmo período de tempo. 

Para isso, foi necessário encontrar o espaço e construir um orgão para garantir que ele desse conta de soar por todo esse tempo. A igreja de São Burchardi (construída no ano 1050 na mesma cidade de Halberstadt) e o orgão foi construído com o auxílio de pessoas que se dispuseram a patrocinar, cada uma, um ano de execução (ainda há anos a serem patrocinados, claro). O início dessa execução aconteceu no dia 05 de setembro, quando John Cage faria 89 anos de idade.

Sobre o compositor John Cage

John Cage é muito conhecido dentro da área da Música, não só pela extensa obra, mas, sobretudo, por suas músicas que exploram os limites daquilo que entendemos ser música. John Cage foi professor de Composição da Universidade de Wesleyan (EUA) desde os anos 1950 até sua morte em 1992.  Em 1952, compôs a sua obra mais conhecida: 4′ 33″ (se lê quatro minutos e 33 segundos) que, conforme manda a partitura, pede que o músico não toque nenhum som intencional por quatro minutos e 33 segundos. Sim, é isso mesmo que você entendeu. A música começa e termina sem que qualquer som seja solicitado pela partitura. A piada entre músicos é que essa é a música mais fácil de tocar já composta, já que o(a) músico(a) não toca nada por 4 minutos e meio e encerra a apresentação.

Leitor(a) do Música para Curiosos levemente aborrecido por desconfiar que John Cage (ou o autor desse blog) está tirando ele(a) pra palhaço(a)

Calma! Deixa eu explicar: a ideia central daquela música (composta de “silêncio”) era de sugerir para a plateia que ouvisse os sons que estavam acontecendo à sua volta como se fosse música. Imagine, a sala de concertos lotada de gente, o músico chega, se senta na frente do piano, levanta o braço e deixa levantado por 4 minutos e meio. Nesse tempo, alguém tosse, alguém se coça, outra pessoa começa a ficar revoltada e falar alto, alguém respira fundo louco pra que aquilo termine… E, na verdade, a ideia do compositor era justamente que as pessoas parassem para ouvir esses sons “de fora do palco” como algo tão importante quanto qualquer outra obra artística, algo muito parecido com o que Duchamp fez com o mictório nas artes visuais.

 Em 1917, o artista Marcel Duchamp Duchamp (1887-1968) mandou esse miquitório sem nenhuma alteração para um concurso de arte e foi rejeitado. Sua intenção não era zombar do júri do concurso, mas, sim, sugerir que víssemos os objetos mais cotidianos de nossas vidas (aqueles que a gente nem nota os detalhes mais) com um olhar atento de quem está apreciando arte. Uma forma de redescobrir e valorizar as formas à nossa volta e, assim como Cage, acabar com a fronteira entre arte e vida.

Essa música é muito conhecida justamente pelas reflexões que ela levanta. Se alguém diz que isso não é música, então, aí que se pergunta “então, o que é música?” e qual é o limite daquilo que pode ser chamado música? É uma peça tão importante em termos históricos que tem seu próprio aplicativo para iPhone, onde se pode ouvir como a peça soou em centenas de lugares pelo mundo (sempre diferente, claro). Outra série de músicas muito conhecidas de John Cage que também inspiraram um aplicativo para Android são as peças para piano preparado, no qual o músico deve acrescentar às cordas do piano objetos como parafusos, porcas e outros que interferem no som do piano até não ser possível reconhecer ser uma peça pra piano solo.

Claro que, uma música como 4′ 33″ nunca vai soar igual e claro que nem o compositor, nem o(a) músico(a) tem como ter controle nenhum sobre os sons que vão surgir. Esse tipo de música aleatória é comum na obra de Cage, mas também é comum músicas em que os sons são controlados de forma tão precisa que são cronometrados, como é o caso da música Water Walk que o próprio Cage executou em um programa de TV em 1960 nos EUA. Você conseguirá ouvir claramente a plateia rindo da performance dele sem que ele se abale nem um pouquinho. Parece até que ele esperava as risadas e as estava ouvindo como parte da música.  

A mais longa execução da peça ORGAN2/ASLAP: como é possível 639 anos sem parar?

A música ORGAN2/ASLAP já foi executada muitas vezes e sempre com menor duração. Na sua estréia em 1987, a peça teve uma duração de 29 minutos, mas há registros de execuções que duraram 48 horas (veja aqui no verbete da Wikipedia que lista outras performances dessa peça e traz as matérias de jornal que as documentam).

 Mas, como o próprio título da peça pede, é preciso avaliar quanto tempo você aguenta tocar a peça (ASLAP é uma sigla para “as long as possible” ou, em português, “o mais lento possível”). O jeito de fazer uma apresentação tão longa precisou contar com um pouco de organização e imaginação. Depois de escolher a igreja na qual a performance aconteceria, era preciso conseguir um orgão e ele foi construído especialmente para essa performance, orçado em cerca de 500 mil euros. É muita grana, mas o tempo estava a favor do projeto que, além de já vir sendo programado há anos, contava com a “sorte” de a música executada iniciar com uma pausa (período em que o músico ou musicista não toca nada) de 17 meses. A música poderia começar mesmo sem ter um orgão no recinto ainda.

Note os anos passando na parte de cima da partitura e veja que o primeiro acorde da música que começou em 2001 só estava previsto pra soar em 2003

 Mas quem é que produz o som? Como o orgão é um aerofone (instrumento musical acionado pelo ar, como uma flauta), foi instalado um compressor no subsolo da igreja. Ele produz a corrente de ar que aciona os tubos quando uma tecla é pressionada. Pra pressionar a tecla, nada de programas de computador  complicados. Só uma solução tão simples como sacos de areia puxando as teclas pra baixo.

Para mudar as notas executadas durante a música, os músicos do projeto colocam ou retiram outros tubos (cada tubo gera uma nota diferente), como você pode ver no vídeo abaixo

O cronograma das mudanças de acorde foi amplamente debatido entre o grupo que idealizou o projeto. Se quiser saber os detalhes super complexos e cheios de esoterismo, vale ler o artigo da Vera Terra. Se você quiser saber das próximas mudanças de acorde na música, é só acessar o verbete da Wikipedia sobre essa peça  em inglês (melhor do que ler no original em alemão, pra maioria, imagino)

E é assim, com sacos de areia, compressores e músicos (e público) atentos ao momento da próxima alteração na peça que a música continuará soando por mais de seis séculos. Desde o início da execução a cidade recebe milhares de visitantes para presenciar as mudanças de acorde, em tempos de pandemia, a mudança mais recente nesse dia 5 de setembro tinha algumas centenas “apenas”.

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1 comentário em “Uma música que dura 639 anos continua sendo música?”

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